Livros

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terça-feira, 7 de novembro de 2017


"Numa noite ida de província, em vez de pratos, talheres, copos, a mesa povoou-se de cor. Era uma mesa de madeira enegrecida. Talvez pela vizinhança com o lume. Comprida. Mas, nessa noite, era o coração do mundo. A noite estava fria. As mãos estendiam-se para a lareira, enquanto os olhos, ávidos, percorriam o festival de cores sobre a mesa, que encerrava uma indizível promessa de alegria. Adultos cirandavam, numa indiferença inexplicável às cores, falavam e falavam, e ele, teria perto de oito anos, vislumbrava o abismo que o separava daquelas criaturas mais altas, algumas com a cabeça prateada, cheias de certezas, convicções… Tudo uma frágil aparência, porque só o olhar de uma criança apreende o véu desiludido que lhes turva o olhar.
 Sente-se na pele que esta é uma noite diferente das outras. Porquê? Sim, não se explica, sente-se. E quando as coisas enveredam pela via dos sentimentos, o verbo torna-se supérfluo, porque compreendemos no outro uma essência irmanada. Mas voltemos à criança. Aos oito anos. Ouve-se o sino. Um sino tem voz de alma. Todos se encaminham para a saída. A mãe veste-lhe o sobretudo. Saem para a noite. O frio arrefece as conversas, mas não o passo. Apesar da crescente distância em relação à mesa, às cores, à promessa de alegria, de mãos nos bolsos, segue os familiares, afinal, ainda havia uma obrigação a cumprir. Em algum lugar de si, sentia que a palavra obrigação era desajustada. Porque cada passo seu proclamava agradecimento. Recorda-se de, antes de entrar no templo, olhar o céu. Estava um céu de natal. Os seus pensamentos, nesse momento, oscilaram entre o menino Jesus e o Pai Natal. Gostava de ambos. Em ambos repousava também uma promessa de alegria. Embora de alegrias distintas. E começava a compreender isso. Porque só uma criança pobre, ornamentada de trapos, nascida sem tecto, era capaz de reunir uma aldeia aquela hora da noite. E o seu coração de oito anos acreditava que aquela não seria a única aldeia. "
in "Natal rima com criança"

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