Livros do Escritor

Livros do Escritor

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

O Bugs Bunny

 



Caros leitores, as minhas desculpas por, nestas últimas crónicas, retratar desprezíveis e sinistras figuras, desde uma Porcachona, a um autêntico boneco que usa cuecas do Tintim, passando por uma perna-de-presunto com laivos de “dona do pedaço,” não se preocupem, voltarei, em breve, aos vôos que sempre me nortearam a escrita, falta-me só retratar uma desprezível e sinistra figura, embora com uma notória aparência de desenho-animado, assim que me apresentaram, logo o meu olhar perdido naquelas mais que proeminentes dentuças, como é óbvio, era-lhe impossível fechar a boca, confesso não lhe ter ouvido uma sílaba, fascinado que estava naquele subir e descer das favolas, bem diante do meu rosto, e eu sem uma cenoura para…, senti-me o maior dos pecadores, como era possível tamanha falha, as favolas, bem diante do meu rosto, subiam, desciam, subiam, desciam, subiam, desciam, e eu sem uma mísera cenoura para sossegar aquele frémito, a indumentária também não me passou despercebida, o casaco anacrónico, trouxe-me, de imediato, à memória uma clássica série portuguesa, “Duarte e Companhia,” que personagem, as favolas, e eu sem uma mísera cenoura para sossegar aquele frémito, o casaco anacrónico, uns quase invisíveis óculos, tudo se desvanecia atrás das mais que proeminentes dentuças, reparei também na oleosidade capilar, talvez pelo reflexo das luzes, como todo o coelho, olhar receoso e atento, o perigo surge de onde menos se espera, em certa ocasião, veio de um telefonema, não obstante estar perante uma audiência, atendeu a chamada e prontamente aos gritos que o estavam a ameaçar, quando me relataram este episódio, não contive a minha angústia e uma lágrima – logo a imagem das favolas, do anacrónico casaco (trouxe-me, de imediato, à memória uma clássica série portuguesa, “Duarte e Companhia”), numa panela fumegante, pelo menos, dessa forma, a oleosidade capilar saberia o que é água –, desculpem, mas esta imagem é demasiado dramática, as dentuças subiam, desciam, subiam, desciam, subiam, desciam, em pânico, “Está a ameaçar-me… Está a ameaçar-me… Está a ameaçar-me!”, todos, por ali, entre a incredulidade e o espanto por tanto terror diante de um singelo telefonema indevidamente  atendido, não era sua função nem contexto para tal, sejamos condescendentes, talvez a esperança, quando o telefone soou, de um saquito de cenouras, temos de ser compreensivos, há uns dias chegou com ânsias de protagonismo, desejos de realizar mímicas, desde o primeiro segundo, percebi que esta criatura tem a garganta proporcional às dentuças, o resto, como é óbvio, demasiado diminuto, instado por mim a avançar com o número teatral, claro que se furtou, expectável, tem a garganta proporcional às dentuças, o resto, como é óbvio, demasiado diminuto, acabou por se sentar ocultado pelo anacrónico casaco e pelas mais que proeminentes favolas, o sebo capilar reflectia o posicionamento das luzes no tecto, um dos flagelos do hoje é o crescente número de acéfalos e acríticos, este desenho-animado só avoluma esta inquietude, bem tenta mascarar a coisa atrás das favolas, enquanto sobem, descem, sobem, descem, sobem, descem, mas não é necessário o dom da clarividência para se intuir a enormíssima distância entre o verbo que lhe sai pelas dentuças e a débil intensidade do olhar, caros leitores, alertei para o facto de, nestas últimas crónicas, retratar desprezíveis e sinistras figuras, desde uma Porcachona, a um autêntico boneco que usa cuecas do Tintim, passando por uma perna-de-presunto com laivos de “dona do pedaço,” não se preocupem, voltarei, em breve, aos vôos que sempre me nortearam a escrita, faltava-me só retratar esta desprezível e sinistra figura, com uma enormíssima distância entre o verbo que lhe sai pelas dentuças e a débil intensidade do olhar, é possível que, por vezes, a digestão lhe seja difícil, toneladas de cenouras lá terão o seu efeito, em momentos assim dá-lhe para tentar saltos que as mirradas pernitas não lhe permitem, até por mensagens, é bom que tenha muito cuidado, a época da caça já abriu, um dia destes pode ter uma desagradável surpresa, não fosse o mundo uma aldeia, e perder a imagem de marca: aquelas mais que proeminentes dentuças! Creio que ninguém se interessaria pelo anacrónico casaco, a memória de uma clássica série portuguesa, “Duarte e Companhia”, no entanto, se quiserem saber a posição das luzes do tecto, acreditem que o sebo capilar é de uma infinita utilidade, ficam, de imediato, com toda a geografia dos pontos luminosos, experimentem convidá-lo, não é preciso muito, basta um saquito de cenouras, assegurem-se apenas de que ninguém lhe telefone, não vá pôr-se aos gritos “Está a ameaçar-me… Está a ameaçar-me… Está a ameaçar-me!”, enquanto as favolas sobem, descem, sobem, descem, sobem, descem, num pânico desmesurado, sejamos condescendentes, tem a garganta proporcional às dentuças, o resto, como é óbvio, demasiado diminuto.

sábado, 29 de novembro de 2025

Um não assunto




Há uns anos, relatei a ascensão dos medíocres, hoje deparamo-nos com os seus podres frutos, a figura que hoje vou descrever é um paradigma da mediocridade, tinha múltiplas formas de iniciar esta narrativa, estou, de facto, indeciso, bom, tenho de escolher, trata-se de uma sujeita a caminhar, em largos passos, para o ocaso da vida, de uma certa distância parece um oito, por algum motivo apelidam este o país das rotundas, pois estão manifestamente em todo o lado, mais uma com o cabelo pintado de amarelo, uma larguíssima percentagem das entradotas, não sei porquê, opta pelo amarelo para maquilhar os brancos, ignoram que o problema não está nos cabelos, mas no oito avistado à légua do corpo, por algum motivo apelidam este o país das rotundas, pois estão manifestamente em todo o lado, enfim, há lugares onde o bom-senso nem ousa bater à porta, esta é daquelas criaturas que, logo à primeira vista, de uma inteligência mínima, causa repulsa, uma pose de “dona do pedaço,” sedenta de toda e qualquer atenção, um sentar-se de lado com a perna cruzada, como se houvesse algum holofote a si dirigido, nem uma lâmpada fluorescente se acendia para iluminar tal degradação, ignoro a causa, também não pretendo conhecê-la, lá surge um rafeirito ou dois a bajulá-la, ela em regozijo, haja um lugar onde, sentada, de lado, com a perna-cruzada, seja atenção para alguém, nem que seja para rafeiritos, quem sabe rareie atenção noutros contextos, a carência é tramada, um discurso superficial, deveras atamancado, frase sim, frase não, debita o sofrível “pronto”, meu Deus, que escassez vocabular, a primeira vez que a ouvi debitar “pronto,” confesso ter olhado para ver se provinha, de facto, daquele enchido, de perna cruzada, com pose de “dona do pedaço,” os óculos no cocuruto, talvez tenha visto numa novela ou em alguma dessas múltiplas revistas para acéfalos, sim, possivelmente, lá concluiu que lhe assentava bem, ora é vê-la, no quotidiano, de painéis-solares sobre a cabeça com laivos de modernaça, simplesmente risível, o problema está um pouco abaixo, no oito avistado à légua do corpo, por algum motivo apelidam este o país das rotundas, pois estão manifestamente em todo o lado, ao segundo “pronto,” num espaço de dois minutos, a personagem estava inteiramente apresentada, só um ou dois rafeiritos fielmente a ouviam, como há uns anos relatei, os medíocres ascenderam, e os invertebrados curvam-se perante estas aberrações em busca de toda e qualquer migalha, mais um minuto e…, outro “pronto,” já me ria de mim para mim, ainda olhei os painéis-solares, sobre o cocuruto, para ver se aguentavam a enxurrada de “prontos,” lá permaneciam, imperturbáveis, talvez colados às toneladas de laca, questionei-me que livros lera para tão exíguo vocabulário, se é que lera algum, embora, de forma evidente, se lançasse para fora de pé a citar nomes de ouvido, como se familiares próximos, nem dois minutos volvidos e outro “pronto,” a ouvi-la, agora, só se mantinha fielmente um rafeirito em anuências, aquelas vulgaridades como se de revelações divinas se tratassem, uma ou duas migalhitas a quanto obrigam, não obstante a escassez de auditório, o oito sob os painéis solares lá continuava a debitar “prontos” circunscritos a um discurso de pré-escolar, noutra ocasião, assisti eu, foi confrontada com uma questão, desta vez, os painéis solares abanaram, nitidamente este oito não estava habituado a tal, foi vê-la reerguer-se naquela pose de “dona do pedaço,” sem jamais olhar a génese da questão, por norma, os medíocres não olham de frente, construir um discurso redondo de duas ou três frases, mais não lhe era exigível, os “prontos” já lhe eram demasiado plurais, para se escudar, e não se demovia, finalizava sempre com “Isso é um não assunto,” qualquer investida do seu interlocutor “Isso é um não assunto,” nem a cabeça abanava, não fossem os painéis solares se precipitarem, dizem que fala alto dos outros quando estão ausentes, previsível, todo o cão ou cadela ladra atrás de um portão, é bom que ganhe juízo, muito juizinho, afinal, trata-se de uma sujeita a caminhar, em largas passadas, para o ocaso da vida, e, nesta caminhada, há quem tenha o dom de colocar os medíocres no seu lugar muito rapidamente, com mais ou menos “pronto,” com ou sem óculos no cocuruto, talvez, isso sim, se providencie um rafeiro para ouvir as suas boçalidades como se revelações divinas, e a cada “pronto” ou “isso é um não assunto,” o rafeirito proclamar um sentido Ámen.



quarta-feira, 26 de novembro de 2025

A Porcachona e o Tintim


 

Uma questão que recorrentemente me colocam é: “Quando começou a escrever?” Só concebo uma resposta: “Desde que aprendi a olhar o mundo,” curiosamente nunca perguntaram a razão que me levou a preencher centenas e centenas de páginas em branco, pois bem, hoje revelá-la-ei, foi há mais de década e meia, um projecto para uma curta-metragem, o guião entregue a um boneco que ambicionava ter o dom da escrita, destino vilão que não lhe conferiu tal dádiva, apesar disso, abnegou-se em cumprir com a narrativa da curta, até que, certa tarde, sou interpelado por uma das protagonistas “Peço desculpa, mas não vou dizer esta fala! É demasiado ridícula! Não lembra a ninguém! Assim, não vamos a lado nenhum! Por favor, escreva você…,” esta última frase ecoou-me na alma, “Por favor, escreva você…,” como se, desde que caminho por este lado, a aguardasse, “Por favor, escreva você…”, um chamamento de ordem-superior, diante da obscenidade de uma página em branco, não recuei, as palavras saíram com a naturalidade de quem há muito aguarda pela sua hora de luz, assim foi, mas uma questão subsiste: Qual foi a fala, demasiado ridícula, que a protagonista se recusou a verbalizar? Pois bem, “Vê lá se queres levar um tabefe…,” riso e consternação povoaram-me ao ler tal deixa, de facto, o boneco bem ambicionava ter o dom da escrita, destino vilão que não lhe conferiu tal dádiva, é vê-lo andar diariamente com um livrito debaixo do braço, sempre confere um ar erudito, a melhor definição deste boneco proveio de um “dito seu amigo”: “É como a cortiça, está sempre à superfície;” confesso, ainda hoje, não ter ouvido melhor definição para esta figura, lá consegue, em todo o ambiente, passar incólume, senta-se e dialoga animadamente com Deus, o Diabo, arcanjos, demónios, e o que demais houver, embora distribua informação apenas com quem lhe permita estar, como a cortiça, à superfície das coisas, um autêntico dançarino, ora em reuniões, pelos cantos, com menopausas ambulantes, ora em estéreis conversas, sobre bola, política ou trivialidades, onde a sua opinião nunca o compromete, “É como a cortiça, está sempre à superfície;” como nunca se deu bem com volantes e pedais, é vê-lo sempre à cata de uma salvífica boleia, uma omnipresente e colorida camisa fora das calças, sempre disfarça as mais que notórias rotundas formas, um andar bamboleante que, para as más-línguas, levanta certas questões, deve ser só maledicência, afinal, pode simplesmente ir em busca de uma salvífica boleia, sinceramente era caso para questionar essas más-línguas: “Vejam lá se querem levar um tabefe?” O incessante enlear do destino levou esta personagem a cruzar-se e, claro, a ficar íntimo da Porcachona, uma obesa, com o cabelo pintado de amarelo, que arranha castelhano, divorciada, mais que previsível, quem aguentaria, por muito tempo, a Porcachona? Laivos de autoridade para quem o permite, como é óbvio, afinal de contas quem no seu perfeito juízo aceitaria um conselho, quanto mais uma ordem, da Porcachona? Há uns tempos, um familiar-directo alertou-me para quem, de facto, era a Porcachona, achei exagerado, hoje tiro-lhe o chapéu, mais uma menopausa ambulante, em conversas de canto com o boneco que tanto se bamboleia ao andar, a cansada história de falar dos outros para não serem falados, temos de compreender que alguém precisa de boleia e a Porcachona de um ouvinte, e ambos de maquilhar a frustração das suas existências, um aspecto intrigante da vida, que me tem feito reflectir, é como as mediocridades se atraem, parece haver uma ordem invisível das coisas que, de forma irreversível, acaba por juntá-las, a compreensão advém da distância, dei por mim, há uns dias, a observar estas duas tétricas figuras de uma salutar dezenas de metros: o boneco, com o omnipresente livrito debaixo do braço, sempre confere um ar erudito, o sorrisito lodoso, a Porcachona, com o cabelo pintado de amarelo, à sua frente, não percebi se grunhia em castelhano, umas calças, não obstante o XXL, apertadas, de onde sobressaíam as marcas do pára-quedas a que devia chamar de cuecas, desculpem, pela dimensão acreditem era, sem dúvida, um pára-quedas, e para ali ficaram, o suficiente para expelir o seu veneno, pouco mais têm para dar ao mundo, por fim, a Porcachona entrou, da distância até comiseração senti, que homem, no seu perfeito juízo, se podia interessar por uma Porcachona, com o cabelo pintado de amarelo, que usa um pára-quedas no lugar de cuecas? O boneco lá seguiu o seu caminho, cabisbaixo, hoje não arranjou a salvífica boleia, pode não perceber de volantes e pedais, mas ao menos bamboleia-se como poucos, e se alguma má-língua insinuar algo, resta questionar: “Vejam lá se querem levar um tabefe?”

domingo, 23 de novembro de 2025

O Sinédrio

 


Nunca, como no hoje, o Sinédrio esteve tão presente, apenas as vestes divergem em formas e colorações, as personagens tétricas subsistem, a essência prevalece: aterrorizar quem ouse a diferença; tal como há dois mil anos, as sombras edificadoras do Sinédrio são as mesmas: não fosse este o seu reino, afinal, o Inferno não é um lugar assim tão longe do aqui; há uns dias, um conhecido viu-se perante esta realidade, presidia ao Sinédrio, no lugar de Caifás, algumas coisas lá se alteraram, embora as personagens tétricas subsistam, uma cinquentona, sem qualquer dívida com a beleza, a indumentária, nem as carnes flácidas e descaídas conseguia maquilhar, algures entre um catálogo do Lidl e os saldos do Continente, a cabeleira grisalha mal disfarçada pela pasta alcatroada que amiúde jorrava cabeça abaixo, o efeito final simplesmente anedótico, parecia uma palmeira andante, o olhar servil tão aquém de um vislumbre de inteligência, daquelas sujeitas a quem um cumprimento já se afigura um esforço demasiado, pela ansiosa procura por adequadas palavras, mediante o interlocutor, para a escassa massa cinzenta, se estava empossada de Caifás era porque interessava às sombras do hoje, a seu lado uma sujeita aquém de pastas alcatroadas para ocultar a grisalha cabeleira, uma omnipresente expressão de enjoo, indício da latente falta de diversão num determinado contexto, o avolumar dos anos só lhe adensa a enjoada face (Quando terá tacteado o céu pela última vez? Se é que alguma vez o vislumbrou…), perante aquele enjoado focinho, estas questões emergem com naturalidade, havia um sujeito, de sotaque hispânico, que nitidamente se gostava de ouvir, por norma, dali só saem esterilidades, no entanto, pouco se pode fazer, assim que lhe é dada a palavra, frases ocas, redondas e inférteis, embora o seu olhar cintile ao ouvir-se, acaba por enternecer, sobretudo pelo sotaque hispânico, de que nitidamente se orgulha, não obstante as décadas longe de tal berço (Como ainda o mantém? Talvez fosse uma marca autoral… A inquestionável demanda por um original carácter…), frases balizadas entre o seu escasso conhecimento das coisas, mas quem o ouvisse, sempre em espanto, o sotaque hispânico somado ao regozijo de se ouvir era demasiado para o comum dos mortais, por estes dias, o Sinédrio convoca dois elementos exteriores prontinhos a apontar o dedo aos que devem ser decretados réus, assim foi com o meu conhecido, um dedo em riste por… Pois, por…? Não conseguiu especificar, todavia o olhar do Sinédrio sobre si, era onde incidia o acusatório dedo, todavia, ele sem a menor vocação para Jesus Cristo, prontamente virou a mesa, percepcionou, de imediato, a génese do acusatório dedo, das aberrações do hoje, cabelos-pintados, desvios comportamentais, inversão de valores, não querem fazer parte do mundo, pelo contrário, pretendem que o mundo se curve às suas nebulosas perturbações, quem nasce com coluna-vertebral dificilmente vacila perante qualquer aberração, o dedo viu-se confrontado, começou a ficar titubeante, desculpas por não encontrar sílabas para sustentar a mínima acusação, os restantes membros do Sinédrio em silêncio, nem vestígios do sotaque hispânico, a omnipresente expressão de enjoo curvada para o tampo da mesa, ao menos, por uns segundos, a realidade mais luminosa, somente a cinquentona, sem qualquer dívida com a beleza, a indumentária, nem as carnes flácidas e descaídas conseguia maquilhar, algures entre um catálogo do Lidl e os saldos do Continente, em esforços para reverter a capitulação do acusatório dedo que, no fim, lá acabou por correr atrás do meu conhecido em esforços para se desculpar, ao saber deste episódio, questionei-me quantos soçobram face ao Sinédrio do hoje, demasiados, sem dúvida, demasiados, tal como há dois mil anos, as sombras edificadoras do Sinédrio são as mesmas, tudo estruturado para triturar quem ouse a diferença, felizmente ainda os há, com a dignidade e o peito de se levantarem, relembrar ao acusatório dedo a sua insignificância e que jamais o mundo se deve curvar a nebulosas perturbações.

sábado, 22 de novembro de 2025

Entropia

 


Só quis dali sair, assim que se viu na rua, expirou longamente, o pensar incessante, sentia-se, por fim, a uma distância segura das coisas, horas antes, ali entrar com a filha, de três anos, ao colo, a testa em chamas, ainda lhe ligou, a alertar para o estado da criança, mas nada, era sexta-feira, há dois ou três meses que, com a desculpa de reuniões mais reuniões, sempre ausente, ela sabia dos jantares e sobremesas com a estagiária do escritório, o aparelho do hoje apenas uma biografia andante, bastou-lhe menos de uma dezena de minutos de distracção da parte dele, ao contrário do expectável, não sentiu raiva, dor, desilusão, apenas uma distância segura das coisas, desconhece o momento, sabia, no entanto, que o deixara de amar, simplesmente, por ele apenas ternura, pelo que foi, nada mais, deixou as coisas seguirem o seu rumo por múltiplas razões, algumas, convenhamos, pouco dignas (comodismo, preguiça, conveniência, vergonha…), parte de si acreditava que ele se apercebera, daí, ao contrário do expectável, raiva, dor, desilusão, apenas uma distância segura das coisas, começou a sentir um aperto no peito quando se cruzava com o colega, recém-divorciado, havia nele um desamparo que lhe despertava emoções há muito adormecidas, tão distintas de correr, com a filha nos braços, devido à testa em chamas, por acaso, numa dessas entediantes tardes de trabalho, encontraram-se junto à máquina de café, ele prontificou-se a encher ambos os copos, agradeceu-lhe com um sorriso algures entre a gratidão e um convite ao diálogo, havia nele um desamparo que lhe despertava emoções há muito adormecidas, como ela desejava saltar a imperativa e sempre incómoda conversa de circunstância sobre a qualidade do café, a temperatura lá fora, o volume de expediente, o seu olhar doloroso e perdido encantaram-na, percebeu-lhe a latente necessidade de diálogo, de um porto de segurança para o encapelado mar da existência, gostou da sonoridade da voz, da desajeitada timidez dos gestos, no entanto, teria de ser ele a entreabrir uma porta, um princípio de que jamais abdicaria, com a desculpa do carro na oficina, aguardou que lhe oferecesse boleia, não tardou, “Não é nenhum incómodo! Tenho muito gosto…,” percebeu-lhe zelo no carro, sempre ajudava a disfarçar os anos, o interior, ao contrário do seu, impecavelmente limpo, talvez o olhar doloroso e perdido fosse uma construção sua, assim que a marcha se iniciou, um incómodo silêncio entre eles, ouviam-se a procurar ansiosamente palavras para construir uma frase que permitisse romper aquele opressivo silêncio, foi ela que “Não queres pôr música?”, “Sim, pode ser…,” de repente, uns acordes melosos, o olhar dele ainda mais doloroso e perdido, ela “Estás bem?,” a questão já pairava e a resposta a nascer-lhe, a canção iluminava-lhe outro rosto, da mulher que o deixara, parece ter regressado a um amor de juventude, segundo se dizia, de bolsos abastados pela herança dos pais, para prolongar o delírio nada como eximir cálculos matemáticos, ele agora sozinho no apartamentozito, de um quarto, no primeiro-andar, com vista para um candeeiro de rua, foi como se parte de si lhe fosse arrancada, para superar a dor convenceu-se de que ela regressaria,  ninguém o demovia, não retirou uma única foto dela do apartamentozito, de um quarto, no primeiro-andar, com vista para um candeeiro de rua, nem tudo lhe podia ser abruptamente extirpado, a verdade é que ela se sentiu uma intrusa, aqueles melosos acordes não eram para si, acabou por ser ele a colocar na primeira rádio com música, mais impessoal e despachado seria difícil, ela exprimiu a sua repulsa olhando para o relógio, se há pouco desejava saltar a imperativa e sempre incómoda conversa de circunstância sobre a qualidade do café, a temperatura lá fora, o volume de expediente, agora só lhe queria virar as costas, ser servida com o debitar musical de uma qualquer rádio constituiu um enormíssimo insulto, como se ela fosse uma vulgaridade, um pechisbeque de trazer por casa, “Estás atrasada para alguma coisa?”, a sua repulsa, afinal, não lhe passou despercebida, “A minha filha está quase a sair da escola…,” filhos, compromissos para a vida, assim lhe dizia um rotundo adeus, não que ele se importasse, já saudoso das fotografias, do candeeiro de rua avistado da janela e do desesperado regresso de uma ideia, que insistia em não abandonar, nos dias seguintes, ambos evitaram a máquina de café, semanas depois, já nem se cumprimentavam, ninguém cumprimenta equívocos, foi até ao café em frente, sentou-se a uma mesa, enquanto aguardava pelo empregado, olhou o incessante trânsito de vultos pelo passeio, reflectiu se, na realidade, há equívocos ou sublimados desejos de tudo uma outra coisa, uma voz ensonada fê-la regressar, “Ora, o que vai ser?”, uma saída de tudo isto, pensou, uma saída de tudo isto, pediu um café, ao contrário da filha, precisava de algo quente para despertar, a verdade é que sentiu inveja de nem uma canção ser para alguém, quanto mais fotos suas, espalhadas por uma casa, a aguardar pelo seu regresso, nem que das janelas se avistasse um candeeiro de rua, a chávena de café lá veio, “É mais alguma coisa?”, “Ser uma canção para alguém… Acha que demora muito?”