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domingo, 18 de fevereiro de 2024

Da dor…

 


Teria feito alguma coisa diferente? Ainda ouvia a pergunta, como se há pouco, admirou-se na altura, não sabe bem se pela pergunta, se pelo momento, se pela entoação, se por tudo, no fundo, era um convite a reiniciar-se, a princípio, ela pensou em dizer um rotundo Não, mas foram tantas as quedas, algumas tão dolorosas, e como é indelével a memória da dor, ela sorri no silêncio de si, apenas, quando lhe surge aquele popular adágio de que o tempo tudo cura, no seu caso, o tempo só acentua, em verdade, o tempo nada cura, nós é que vamos ensurdecendo para os gritos que nos habitam, por nos pertencerem, por uma capitulação consciente, por o amanhã ser um outro hoje, e chegada a noite, em cada canto de nós, uma dor no lugar de uma voz, de novo, Teria feito alguma coisa diferente? Agradou-lhe a questão, parecia-lhe, de repente, que a vida a convidara a sentar e a pensar-se, o rotundo Não, quase emitido, teria sido bastante idiota, neste momento, na suavidade da distância, compreende-o, porque viver é cair, só quem não percebe esta singeleza é que reafirma apenas a queda, e a consequente incompreensão da dor, como se ao negar silenciasse todos os gritos que ecoam em si, tolice, naqueles momentos que precedem o abandono diário, em que o mundo anoitecido amplia os passos do próprio pensar, quantos gritos em cada um de nós? Quanta dor sob o palco imemorial do sonho? Teria feito alguma coisa diferente? Um sonoro Sim não tardou muito, alguma coisa, não, mas sim tanta e tanta coisa, quantas vezes o Não cederia lugar ao Sim, e vice-versa, noutras ocasiões, um pouco mais de paciência para aquela voz que deixámos de ouvir, e pedia tão pouco, só que a escutássemos, hoje apenas uma ténue memória, um fiozito melancólico que insiste em nos apontar a direcção dos passos no amanhã, se lhe seguisse as indicações, meu Deus, tanta dor evitada, quantas manhãs não teria vivido se costas à preguiça, se um pouco de atenção àqueles sinais, e são tantos, que a vida sempre nos dá, mas a nossa flagrante desatenção, a estupidez de insistirmos no mesmo caminho, nas mesmas vozes, naquele aparente seguro recreio onde somente construímos ilusões, tantas vozes em nós adormecidas, se, um dia, num acaso do caminho, se cruzam connosco, o que por vezes sucede, primeiro, claro, a educação, depois, já pouco sobra, o embaraço pela escassez de verbo, ambos o compreendemos, recuamos, em preces, para que passe despercebido, o outro felizmente também o faz, é a única sintonia daquele instante, por fim, respiramo-nos, e percebemos que já não há nada, a voracidade alimentada do hoje logo nos faz regressar ao instante, nem paramos para questionar o porquê de recuos, em preces, diante daquele rosto que frequentava o mesmo aparente seguro recreio, onde, de facto, somente construíamos ilusões, se um pouco de atenção àqueles sinais, e são tantos, que a vida sempre nos dá, tudo isso ruiria, diante dos nossos olhos, bem mais cedo, esse é o nosso pecado, a desatenção, e ao não assumi-lo, persiste, em nós, uma sublimada procura por um aparente seguro recreio, em verdade, olhamos a voz de ontem como alguém que decidiu abandonar o nosso recreio, nada mais, arranjamos, claro, argumentos que oscilam entre o trivial e o intrincado para justificar aquela obscura atmosfera que por ali se instalou, ao ponto de não haver frases, nem sequer de algibeira, para a troca, quando, no ontem, se perdiam tardes ou noites a fio, a confidenciar sonhos e sentires, é sabido que se partilha sonhos com muito poucos, talvez por o sonho falar numa outra língua, e não são muitos que a percebem, contudo, a luz do hoje é tão estranha, visto daqui, há qualquer coisa de irreal naquele aparente seguro recreio, como em tudo que nos trouxe a este ponto do caminho, talvez por isso, de vez em quando, uma voz desperta em nós, para questionar se teria feito alguma coisa diferente? Por vezes, dou por mim a regressar a certos momentos, a ter a atitude que, vista daqui, parece mais certa, e a esperar o desenrolar da história… Acho que esta é a melhor resposta. Uma frase que se cala, um olhar desviado, um gesto por se cumprir, o todo, de facto, na aparente insignificância, e tudo seria uma outra coisa, se é tarde neste ponto do caminho? Se teria feito alguma coisa diferente? Como não? Esperem aqui um pouco, só vou ali atrás, ter a atitude correcta, e esperar pelo desenrolar de uma certa história…

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