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segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

A noite do pensar

 


Andava a adiar a coisa, eu bem sabia porquê, sempre detestei esperar, e ali não se fazia outra coisa, mas o que ela insistiu para que eu…, depois já não conseguia com os joelhos, como morávamos num 2º andar, o problema recorrente, nunca fui homem de estar muito tempo quieto, detestava televisão, ao contrário dela, que se perdia dias a fio com aquilo, não me importava nada com isso, enquanto via as novelas, ao menos, deixava-me em paz, coitada, nem me chateava muito, mas acontece que, às vezes, eu gosto de estar cá comigo, com as minhas coisas, a relembrar isto e aquilo, e, nesses momentos, não gosto que me arranquem de onde estava, é um pouco como quando estamos do lado de lá dos sonhos e algo nos faz relembrar o aqui, o despertador, uma buzina, a porta demasiada de um vizinho, um ladrar, sei lá, tanta coisa a empurrar-nos sempre para o lado de cá das coisas, de facto, ela, neste particular, era pródiga, podia estar noutra divisão da casa, no entanto, a sua voz omnipresente O que queres para o almoço? Já tomaste o comprimido do colesterol? E o da tensão? Já viste como está o colarinho desta camisa? Sabes o que aconteceu à vizinha do… Deixava de ouvir, a partir deste exacto ponto, um semi-sorriso no rosto e anuía compassadamente, como se acompanhasse aquele desvelo que, para mim, se podia desenrolar em Marte, é curioso, tantos anos sob um mesmo tecto, porém, nunca encontrei arrojo para lhe confessar que aqueles enredos não me interessavam minimamente, às vezes, talvez para colorir a coisa, deixava uma questão no ar, aí, fruto da experiência, apoiava o queixo na mão, ar de pensador tudo vence, e emitia um arrastado Realmente…, certificada de que a estava a acompanhar, ela, com renovadas forças, logo se atirava para uma nova trama, às vezes, na vida, termos um ouvinte é tudo, basta-nos tão pouco, mas esta mania do mais, amanhecia um Outono a cumprimentar Inverno, um desses dias tão cinzentos que parecemos flutuar sobre a existência, logo que assomamos à janela do mundo, percebemos que nada perdurará na memória, talvez por uma impressão desconfortável de um cinzento demasiado, assim que abri a porta da rua, compreendi uma latente ameaça de chuva, ela fez questão de me acompanhar, percorremos os trezentos metros até ao destino, de guarda-chuva na mão, embora fechado, e de olhares para os céus, àquela hora já uma bicha significativa, reparei, com curiosidade, na quantidade de olhares no passeio, às vezes questiono-me se perdemos a capacidade de nos olharmos, de nos reconhecermos enquanto seres da mesma espécie, jamais diria de nos compreendermos, para isso, não são precisos livros, basta olhar à volta por meio-minuto, chegámos à recepção após quase uma hora de espera, cartão de uma coisa, número de outra, consulta para a tarde, então porquê vir de manhã, e o médico que ainda não chegou, mas não convém ir embora, mas porquê, se a consulta só de tarde, a resposta que não uma resposta, por tão vaga, tão automática, procurei-lhe humanidade sabendo da dificuldade de tal empreitada, mesmo assim, persisti, o rosto sempre com o ecrã, acho que nunca nos olhou, por ali, também olhares de passeio, mas sem haver passeio, de novo, questiono-me se perdemos a capacidade de nos olharmos, ou talvez já não o faça, com a questão nasce sempre a resposta, nós é que sempre desatentos para estas singularidades da existência, insisti Então, porquê vir de manhã? Logo a educação em ruínas, certamente nunca por ali habitou, uma expiração que, de tão sonora, roçou a imbecilidade, Os senhores é que sabem da vossa vida. Se quiserem esperar, esperam, se não quiserem, podem ir-se embora. Agora, se perderem a vez, não se venham para aqui queixar… Estou a avisar: vagas para consultas, só daqui a seis meses! Ela, como sempre, a apertar-me, com gentileza, o braço, já sabia que queria dali sair, era quase um código nosso, apesar de nunca o estipularmos, quando se partilha os passos desta vida, há coisas e lugares onde as palavras não cabem, e isso é bom, ponto final. Fomo-nos sentar e viver a espera, quando já nada esperamos, continuam a obrigar-nos a esperar, chego à conclusão de que a vida se resume a uma enorme ironia, parece sentir gozo em se rir na nossa cara, como se no seu enleio nos conduzisse ao ponto de onde julgáramos ter partido há tanto, e, afinal, ainda ali estamos, com o seu risinho desdenhoso diante de nós, para ali ficámos, à nossa volta, mais olhares de passeio, uma questão em mim (Em que momento deixámos de nos olhar?), talvez por isso, eu saia cada vez menos, já aqui não pertenço, ainda bem que ela com uma revista, pelo menos, não se perde em questões, mas esta invernosa fonte nunca me secou, a certa altura, as costas manifestaram-se, ao meu redor, já uma outra luz, é sabido que tudo muda, ou talvez não, uma luz cansada, a revista já outra, por ali, o passeio menos olhado, nisto, o meu nome ecoa pelos corredores, pareceu-me que chamavam um outro, tal a distância na articulação das sílabas, uma vez mais, neste dia, procurava humanidade, agora era eu em olhares de passeio, em busca de algo, quiçá alguém tenha deixado cair qualquer coisa que nos ilumine o momento, pelo meu braço, gentileza, na forma de um código muito nosso, lá nos levantámos, meio trôpegos de tanta espera, ainda inebriados da surpresa do nome a ecoar pelos corredores, agora por uma segunda vez, recebeu-nos, também pela segunda vez nesse dia, um rosto debruçado para um ecrã, ainda não nos sentáramos e uma voz, como se de outra margem, Então, o que o traz por cá? De que se queixa? Tem alguma dor? Acabaram-se-lhe as receitas? Não me cheguei a sentar, desta vez, fui eu em gentileza para o braço dela, um código muito nosso, se há coisa que a idade ensina é a sair de cena sem se dar muito por isso…

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