Livros do Escritor
domingo, 29 de agosto de 2021
sábado, 21 de agosto de 2021
quarta-feira, 18 de agosto de 2021
Eu sou muitos
Lá fora parece que continua a vida. Ele, neste momento, deitado de costas na cama, olhos fechados, mas a tanto verem, numa, talvez última, tentativa de compreensão, enquanto a luz do mundo a alongar-se no soalho, como se abraçasse coisas antes de uma partida cansada de tão repetida. Imagens do que foi a passar diante dele, sim, hoje um passageiro da solidão a assistir, numa resignação incómoda, a um se sempre plural, mas pintado de pretérito. Quantas escolhas cabem numa vida? Talvez demasiadas, talvez escassas, para, numa manhã, diante de um espelho, uma questão subsistir, E se…? Um sim em vez de um não, aqui e ali um pouco mais de paciência, noutras alturas, pedia-se maturidade, assim talvez percebesse a companhia de Judas, e a compreensão do ouvir, no fundo, a única arte por todos apreciada, é verdade, como tudo poderia ser uma outra coisa. Bastava um gesto para outra vida. A singeleza de um movimento. Nada mais. Ele continua a rememorar, e compreende quantos outros silenciou em si. Aqui chegado, percebe a vida não como uma subida, porventura íngreme, mas sim como uma constante descida, e, para trás, apenas a sombra inexorável do passado, que lhe grita inclementemente Se… Hoje ostenta um olhar sábio de cão velho. Porém, jaz sob destroços de questões nunca respondidas: como gritos sem voz. Um frémito percorre-o como se lhe relembrasse a existência. Da janela percebe ainda o clamor da vida, pelo soalho a luz a encolher-se, enquanto o rosto da noite se eleva pelas alturas do sonho, mas ele persiste na memória, rio de águas traiçoeiras que o faz embater sempre nos mesmos escolhos. Pelo menos, já lhes sabe o gosto da dor.
O que diz um olhar? Um olhar tem o
verbo do tempo. Para compreendê-lo, nunca o instante, apenas a testa cansada do
viajante que, da lonjura, vê quanto de si ficou sob o pó dos caminhos. Ali
deitado, já não se importa com as portas que se lhe fecharam. Apenas o baque
longínquo resiste numa amargura obstinada. Uma porta a fechar-se fala sempre
mais alto do que aquela que se abre. Talvez por um início ser sempre temeroso,
e a conclusão, por vezes, precipitada. Ele, agora, com vozes no lugar de
rostos. Quase uma dor, tal a nitidez de algumas vozes. Como se diálogos
retomados. Emudecido diz-lhes Esperem!
Para quando? Agora sorrisos indulgentes, as vozes a cessarem, no seu lugar
apenas clareiras desoladas pelo que foi. Lá fora, já candeeiros a reflectir
débeis sombras, a natureza do regresso a cumprir-se, e tardes de infância,
tardes d´além-tempo, diante de si, há lugares onde sabe bem regressar, talvez
por não haver lugar ao arrependimento. E nessas tardes idas, embora agora tão
presentes, ele já não na cama, mas com uma bola nos pés, pendurado numa árvore
a olhar um horizonte tão aquém dos seus desejos, a sentir a expiração da terra
enquanto habilidades, na ponta de dedos, com berlindes, o primeiro tremor no
peito por um olhar em que se compreendeu só, sim, por aqui o arrependimento não
encontrou a porta de entrada. Isso deu-se um pouco mais tarde, quando o mundo
se começou a pintar de outras cores. Mas dessas tonalidades está ele cansado.
Daí os olhos fechados. Daí a sua fadiga. Daí o seu contínuo regresso, por um
rio, a um lugar d´além-tempo, onde a cor do sentir se sobrepunha à do pensar. E
onde a vida era apenas o momento: a bola rematada, a árvore subida, o monte
conquistado, e aquele olhar, onde se demorou pela primeira vez, com sabor a
horizonte, mas que lhe apresentou o Futuro. Percebeu as sombras, enquanto a
distância entre si e aqueles olhos. Desde esse momento, não lhe bastava rematar
uma bola, subir uma árvore, conquistar mais um monte… Algo mudara demasiado
depressa. No tempo de um olhar. Nada mais. Porque regressa, hoje, deitado de
costas na cama, olhos fechados, enquanto o rosto da noite se eleva pelas
alturas do sonho, a esse instante? Talvez para compreender o momento em que lhe
foi apresentado o Futuro. Talvez para se saber compreender a si. Talvez pelas
saudades de saber horizontes aquém dos seus desejos…
terça-feira, 17 de agosto de 2021
segunda-feira, 16 de agosto de 2021
domingo, 15 de agosto de 2021
sexta-feira, 13 de agosto de 2021
Ninguém foge a esta pergunta, mais cedo ou mais tarde salta-nos ao caminho, e para ali fica, desdenhosa, à espera de uma resposta que sempre calamos (afinal, o que ando aqui a fazer?), acredito que morrer começa quando perdemos os motivos para aqui continuar, como se fôssemos perdendo a bagagem ao longo da jornada, até nada restar...
in Deslumbramento
quinta-feira, 12 de agosto de 2021
quarta-feira, 11 de agosto de 2021
segunda-feira, 9 de agosto de 2021
domingo, 8 de agosto de 2021
sexta-feira, 6 de agosto de 2021
quarta-feira, 4 de agosto de 2021
Olhos que se olham, almas que se tocam…
Desculpe, se me dirijo a si desta forma, mas não encontrei outra, e,
sabe, há algum tempo que lhe queria dizer, bom, acho que sabe, sinto que, de
certa forma, você também sente, sim, lembra-se no outro dia, lá no café, estava
a servir-me, enquanto a sua mão, com a chávena, num movimento descendente em
direcção à mesa, eu a desejar que o mundo se esquecesse de nós, a sentir o seu
perfume, porventura barato, mas sempre honrado, nisto, os nossos olhares a
encontrarem-se, e uma linguagem além-palavra, no fundo, quanto dissemos de nós
naquele instante, eu acho que lhe disse tudo, você também algumas coisas, uma
súbita sombra de timidez pelo seu rosto, eu a distanciar-me de mim, a perder-me
nesse novo continente que era a sua face, você, apesar da timidez, permanecia
na honra de me suster o olhar, por fim, eu, receoso de me perder por completo,
declinei, mas num regresso, como raras vezes sucede nesta sucessão de dias sem
porquê, há quem lhe chame vida, enriquecido, nisto, apercebo-me de que se
afasta, por favor, não me pergunte como, mas, sim, os seus passos, cada vez
mais distantes, ressoaram invernosos em mim, procuro, à minha volta, por algo
flutuante, encontro um jornal, nem vi se tinha a data condizente, limitei-me a
abri-lo, nem sei já onde, apenas uma distante sensação de que ainda estava à
superfície, porque há muito que submergira a um sentir de fonte incógnita, e,
sim, inesperada, talvez nunca estejamos preparados, por inteiro, para acolher a
bússola dos sentimentos, por outras palavras, quem nos dita os caminhos do
mundo, porque, por vezes, temos de contrariar o vento da realidade, que nos
arrefece o interior, mas, desculpe, estou a divagar, permita-me que lhe fale
das vezes que a observo pela montra, a sua forma de andar, como se pertencesse
a outros contextos, muito distantes de um palco de mesas e cadeiras
estridentes, eu sei que foi moldada para outros cenários, captei-lhe, mais do
que uma vez, vestígios de cansaço pelo rosto e gestos, talvez uma febre no seu
filho, desculpe, mas tive de me informar, espero que não me leve a mal, sei que
tem sete anos, e sabemos como as crianças adoecem, sobretudo as de hoje,
sintéticas como o seu mundo, assim que uma brisa lhes relembra horizonte cedem
à vertigem, também sei do seu companheiro, acho, até, que me chegou a fazer uma
revisão ao carro, naquela oficina ali ao fundo da alameda, isto antes da filha
mais nova do patrão, dos passeios de mota, ela sempre tão quente, você, na
altura, sentada no mundo da maternidade, um dia, a moto perdeu a memória desta
rua, há quem fale que circula, hoje, pelos algarves, ainda com a mesma
velocidade, não lhe pode levar a mal, coitado, ele era susceptível a gripes,
daí a receptividade aos calores, ainda me lembro de ele espirrar, com a chave
do meu carro na mão, antes do orçamento, sei que se esqueceu das obrigações, ao
menos deixou um nome ao pequeno, olhe que há muitos que nem isso, esqueça-o,
perdoe-lhe, tem-se aguentado assim, portanto olhe o amanhã, e, por falar em
futuro, gostaria de lhe servir, num movimento descendente em direcção a uma
mesa, um café, e, assim, talvez o seu rosto e gestos se aquietassem, e talvez
se, em verdade, o mundo se esquecesse de nós, a sentir o seu perfume,
porventura barato, mas sempre honrado, eu lhe murmurasse a linguagem do meu
olhar.