Livros

Livros

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Eu sou muitos


 

Lá fora parece que continua a vida. Ele, neste momento, deitado de costas na cama, olhos fechados, mas a tanto verem, numa, talvez última, tentativa de compreensão, enquanto a luz do mundo a alongar-se no soalho, como se abraçasse coisas antes de uma partida cansada de tão repetida. Imagens do que foi a passar diante dele, sim, hoje um passageiro da solidão a assistir, numa resignação incómoda, a um se sempre plural, mas pintado de pretérito. Quantas escolhas cabem numa vida? Talvez demasiadas, talvez escassas, para, numa manhã, diante de um espelho, uma questão subsistir, E se…? Um sim em vez de um não, aqui e ali um pouco mais de paciência, noutras alturas, pedia-se maturidade, assim talvez percebesse a companhia de Judas, e a compreensão do ouvir, no fundo, a única arte por todos apreciada, é verdade, como tudo poderia ser uma outra coisa. Bastava um gesto para outra vida. A singeleza de um movimento. Nada mais. Ele continua a rememorar, e compreende quantos outros silenciou em si. Aqui chegado, percebe a vida não como uma subida, porventura íngreme, mas sim como uma constante descida, e, para trás, apenas a sombra inexorável do passado, que lhe grita inclementemente Se… Hoje ostenta um olhar sábio de cão velho. Porém, jaz sob destroços de questões nunca respondidas: como gritos sem voz. Um frémito percorre-o como se lhe relembrasse a existência. Da janela percebe ainda o clamor da vida, pelo soalho a luz a encolher-se, enquanto o rosto da noite se eleva pelas alturas do sonho, mas ele persiste na memória, rio de águas traiçoeiras que o faz embater sempre nos mesmos escolhos. Pelo menos, já lhes sabe o gosto da dor.

O que diz um olhar? Um olhar tem o verbo do tempo. Para compreendê-lo, nunca o instante, apenas a testa cansada do viajante que, da lonjura, vê quanto de si ficou sob o pó dos caminhos. Ali deitado, já não se importa com as portas que se lhe fecharam. Apenas o baque longínquo resiste numa amargura obstinada. Uma porta a fechar-se fala sempre mais alto do que aquela que se abre. Talvez por um início ser sempre temeroso, e a conclusão, por vezes, precipitada. Ele, agora, com vozes no lugar de rostos. Quase uma dor, tal a nitidez de algumas vozes. Como se diálogos retomados. Emudecido diz-lhes Esperem! Para quando? Agora sorrisos indulgentes, as vozes a cessarem, no seu lugar apenas clareiras desoladas pelo que foi. Lá fora, já candeeiros a reflectir débeis sombras, a natureza do regresso a cumprir-se, e tardes de infância, tardes d´além-tempo, diante de si, há lugares onde sabe bem regressar, talvez por não haver lugar ao arrependimento. E nessas tardes idas, embora agora tão presentes, ele já não na cama, mas com uma bola nos pés, pendurado numa árvore a olhar um horizonte tão aquém dos seus desejos, a sentir a expiração da terra enquanto habilidades, na ponta de dedos, com berlindes, o primeiro tremor no peito por um olhar em que se compreendeu só, sim, por aqui o arrependimento não encontrou a porta de entrada. Isso deu-se um pouco mais tarde, quando o mundo se começou a pintar de outras cores. Mas dessas tonalidades está ele cansado. Daí os olhos fechados. Daí a sua fadiga. Daí o seu contínuo regresso, por um rio, a um lugar d´além-tempo, onde a cor do sentir se sobrepunha à do pensar. E onde a vida era apenas o momento: a bola rematada, a árvore subida, o monte conquistado, e aquele olhar, onde se demorou pela primeira vez, com sabor a horizonte, mas que lhe apresentou o Futuro. Percebeu as sombras, enquanto a distância entre si e aqueles olhos. Desde esse momento, não lhe bastava rematar uma bola, subir uma árvore, conquistar mais um monte… Algo mudara demasiado depressa. No tempo de um olhar. Nada mais. Porque regressa, hoje, deitado de costas na cama, olhos fechados, enquanto o rosto da noite se eleva pelas alturas do sonho, a esse instante? Talvez para compreender o momento em que lhe foi apresentado o Futuro. Talvez para se saber compreender a si. Talvez pelas saudades de saber horizontes aquém dos seus desejos…


Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.