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domingo, 25 de abril de 2021

Descem estrelas, levantam-se sonhos


 

Hoje vê o mundo por detrás de um balcão. Já o observara de outras formas. Ainda se recorda dessas outras faces do viver. Mas não é um saudosista. Sempre proferiu, bem alto, que O passado não existe. Logo que terminava a frase, sentia um olhar sobre si, apenas desgostoso, nada mais, sem qualquer vislumbre de censura, numa incredulidade muda, sim, a sua avó, num canto da sala, o terço na mão, vestida de saudade, a ruminar Ave-Marias entrecortadas por Pais-nossos, uma manta cinzenta sobre os joelhos, e aquele interminável monólogo, pautado pelo arrastar de pedrinhas brancas, encadeadas por uma corrente dourada, sempre sussurrado, de certa forma, descia sobre ele um sentir de respeito que o emudecia, afinal, Talvez o passado existisse, nem que fosse murmurado por contas que nos preenchem os dedos. Há quanto tempo as contas brancas, encadeadas por uma corrente dourada, no fundo de uma qualquer gaveta? Há quanto não ouvia sussurros daquele canto da sala? E onde pára a manta cinzenta? E ele com saudade de olhares despidos de censura. Afinal, o passado a nascer-lhe. Talvez por isso, as frases saíssem-lhe, agora, pausadas. Mesmo atrás do balcão, enquanto lhe gritam por cafés, uísques, imperiais, tabaco, mãos estendidas na exigência célere de trocos, economiza a voz num sorriso equilibrado que transparece solicitude e deferência. O mundo atrás de um balcão… Sim, dali já viu muitos mundos! Quantos viu cair para tão poucos se erguerem! Quantos se perderam pelos passeios circundantes para tão poucos regressos! E um silêncio crescente com os anos… Quantas malas, frutos da pressa, não viu passar, para destino incerto, no passeio lá fora? E de uma janela qualquer, sempre um rosto a acompanhar os passos dessa mala, uma vezes em desespero, outras em regozijo, mas a vislumbrar uma partida irreversível, rumo ao lugar de uma outra existência inacabada. No entanto, por ali, uma voz subtraía-se. Outras janelas, com o entardecer, mantinham-se escuras, é verdade, quantos filhos não deixavam o lar inicial, para edificar o seu? Noutros casos, rostos que se iam para, no seu lugar, a memória de uma voz. Enquanto isto, havia janelas que se iluminavam, com a noite, e novos pedidos por cafés, uísques, imperiais, tabaco, ecoavam na novidade de outras vozes. Quando lhe pagavam, olhava sempre o rosto, em vez da mão. Dessa forma, aprendeu a compreender horizontes. Por vezes, um café superava uma larga mariscada. A triste verdade: sempre o esforço e a proporção das coisas. Que privilégio assistir ao desfile da vida, daquele sítio! Mas o mundo passava diante dele, e ele sempre no receio de lhe tocar. Assim que saía, corria para a sua janela de eleição: um rectângulo branco que, logo que se apagavam as luzes, se iluminava de possibilidades… Sim, apenas isso, afinal ele poderia ter sido outros. E aquelas vidas, noutros tempos, noutros lugares, contempladas no negrume de uma sala, povoada por estranhos (talvez quisessem também ser outros), subtraíam-lhe o balcão da frente, desse modo, ele tinha a possibilidade de dar um passo e esboçar um gesto numa direcção só sua. Por vezes, com o regresso das luzes, baixava o rosto para ocultar um sentir excessivo – acontece quando as emoções abandonam o seu leito! Esperava que os outros saíssem primeiro. Permanecia sentado, a assistir ao desfile vertical das letras, enquanto a música ressoava em si, numa sintonia intraduzível. Quantas vezes nos levantamos, no espaço de um dia, com mais dez anos? Era o que lhe sucedia. Agora estava no passeio, ainda a olhar o cartaz iluminado. Por um par de horas, fora outro. Sem balcão à sua frente, sem vozes altas, a gritar por trocos, cafés, uísques, imperiais, tabaco… Caminha ainda com o sabor desta existência recém-dissolvida. Contempla a sua sombra pelo passeio. Uma generosidade dos candeeiros agora iluminados. Levanta o olhar. Janelas iluminadas, outras na obscuridade. Lembra-se de lhe terem dito que Deus está em toda a parte, e ele pensa, Meu Deus, como deve ser penoso… Desejou, espontaneamente, que Deus também tivesse um rectângulo branco, para, assim que se apagassem as luzes, se iluminar de possibilidades…

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