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quarta-feira, 7 de abril de 2021

Caiu a noite, e eu não percebi o dia


 

Ouve o toque da campainha. Hoje, sem saber porquê, soou-lhe demasiado estridente. Como se a acordassem de si. Onde estaria? Quantas vezes nos batem à porta na vida? Nunca saberemos esta resposta, porque a surdez habita a circunstância. Tal como a cegueira… Ela a arrastar os chinelos (que idade teriam?) pela tijoleira, ele na sala (talvez tivesse desligado o aparelho), sempre com as notícias, para relembrar a existência de um mundo que já não lhe pertence, ela ainda não destrancara a porta, e, de novo, a campainha, agora cá em cima, já se percebe o barulho, assim que uma fresta do patamar na tijoleira, os netos num galope, casa adentro, ela em perplexidade, a equilibrar um sorriso, a filha num rosto de pressa, Está tudo bem, mãe? Venho buscá-los aí por volta das nove. Dá-lhes também de jantar! Não, não posso entrar… Estou cheia de pressa! Logo falamos. Adeus! Ela fecha a porta, com a lentidão do espanto. Onde se perderam? Em que momento se olhavam sem se reconhecerem? Hoje é Domingo. Deixa-lhes os filhos, parte leve, sim, já providenciou um novo leito, ainda sofreu com o arrastar do divórcio (quantos meses?), ele não facilitou com nada, afinal, as coisas não estão fáceis para ninguém, a hipoteca da casa, houve necessidade de renegociar tudo com o banco, havia um carro, mas fora oferta do pai dele, tal como as mobílias do apartamento, ele sempre intransigente, por vezes, ela, em lágrimas, gritava-lhe factos, a loura com metade da idade, ainda na faculdade, fértil em decotes, a sublinhar-lhe figuras de ridículo, ele a estugar o passo, com alguma razão, há frases que nasceram para não se sublinhar, e ainda os filhos, tudo bem, ficam com a mãe, neste ponto, ele solícito, porventura em demasia, ela não estranhou, porque a expressão de anuência indiciava o enfado da criança que, após um novíssimo brinquedo, arruma o antigo num qualquer lugar longe de si. Nessa altura, aportou lá por casa. Houve necessidade de mais três pratos na mesa. Enquanto o barulho crescia por ali, as crianças, discussões ao telefone, havia sempre uma questão inconclusa, sim, há sempre uma partilha por resolver, uma factura por liquidar, os saltos dela sempre demasiado altos para a tijoleira, ele, por fim, retirou as pilhas do aparelho, compreendeu que seria melhor parecer ouvir. Apenas isso. Sorria, nada mais. Os netos a sair da mesa, sem a licença da idade, corridas sem meta pela casa, os cinzeiros, outrora decorativos, agora cobertos pelos despojos de um sistema nervoso descompassado, e, pela casa, o odor de uma tristeza em combustão, nem os filhos a coberto desta expiração angustiada, tornou-se comum o objecto isqueiro naquelas paragens, antes um perfeito estranho, hoje um aliado imprescindível, os saltos, da pródiga, sempre demasiado altos para a tijoleira, a mulher, quando o olhava, a maquilhar, no impossível, a mágoa. Por fim, a filha anuncia Vou dividir a casa com uma amiga. Rachamos a renda, e pronto! É aqui perto. Assim, os miúdos podem vir cá comer. Eles renitentes. Com a amiga, com a renda, rachada ou não, com a filha, que encolhia as roupas a olhos vistos, como se à crescente carne à vista correspondesse uma diminuição etária, ele pesaroso com a decadência vislumbrada, pena que não pudesse retirar as pilhas da vista, a mulher encolhida num canto de si, os netos que cumpriam intransigentemente as refeições por ali, aqui chegados, e após uma caminhada de oito décadas, compreenderam como se multiplica pães e peixe. Sim, afinal, é simples. Certo dia, a filha anuncia um namorado. Pelo menos, desde ali que a roupa deixou de encolher. Talvez tivesse acertado com o detergente e o programa de lavagem. Aos fins-de-semana era comum esta visita matinal. Sempre numa pressa crescente, procedia à entrega dos filhos, e partia numa odisseia só sua, ou talvez não, quantos não caminham para esquecer na esperança da distância? Certa tarde, há alguns dias, regressa com o namorado para vir buscar os filhos. Denotava-se-lhe um desajustado comportamento adolescente. O pai sempre na poltrona. Não se levantou, nem exteriorizou qualquer gesto de cumprimento. Ela optou, como sempre sucede, pela via maternal. A mãe, espartilhada pela educação e por um sentir demasiado, recebeu-o com cordialidade. Não deixou de lhe notar o anelar esquerdo previamente ocupado e uma geografia cansada no rosto. Curioso que o encolher de roupas apenas possibilitasse este bónus extenuado! Após o jantar, regressou pelos filhos. Pelo menos, algumas vezes, recuperava os gestos da maternidade. Assim que a porta fechada, um silêncio musical ecoa pela casa anoitecida, ela senta-se na poltrona vaga ao lado dele. Há muito que lhe percebera as pilhas largadas debaixo de uma moldura. Também eram excedentárias na sua comunicação. Bastava-lhes o olhar. Ela, sempre num canto de si, de braços caídos pela compreensão do efémero, Onde falhámos? Ele, primeiro, olha o seu anelar, a seguir, contempla o dela, em ambos pontificava uma circunferência, outrora reluzente, hoje esbatida pelas voltas do mundo. De seguida, olha-a nos olhos. Como vês, não falhámos em nada. No mais, o mundo é que falha por nós.

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