Escrever, estranha actividade esta. Para que se escreve? Esta
é, em certa medida, uma questão redundante. Porque a escrita é, sem dúvida,
necessária à vida social. Mas ao trazer à liça esta questão, procura-se
evidenciar um outro nível da escrita, quiçá mais subterrâneo, o eu que se derrama numa folha de papel.
Sim, o desafio supremo: fundir a vida num rectângulo branco. Nunca, como hoje,
se publicou tanto em Portugal. Não quero entrar pela problematizante dicotomia quantidade/qualidade. É demasiado
evidente. Basta olhar a montra de uma qualquer livraria. Há uns dias, a título
de exemplo, vi um romance extraordinário (Cotovia,
de Deszo Kosztolanyi), por uns meros 4,50, em 2ª edição. Note-se que a 1ª
edição data, se não estou em erro, de 2003. É espantoso! Um romance magnífico
que, no nosso país, está num verdadeiro limbo. Poderia, como é evidente, citar
muitos outros. Mas por aqui me fico. Já não é nova a questão de se ensinar a ler, mas a sua pertinência
está em crescendo, sem dúvida alguma. Sim, estou em crer que um jovem leitor de
Harry Potter não venha, no futuro, a pegar em Dostoiévski. Mas esta é uma
problemática transversal a outras formas de arte: a música, o cinema, etc…
Basta atentar nos discos mais vendidos, ou nos filmes com mais assistência. O
que nos resta? Neste particular, surge-me sempre a imagem final de O Rinoceronte, de Ionesco. Sim, é
a solução. No fundo, a única possível, para quem a sua consciência não é um
simples ramo que se inclina com o vento. Regressemos à questão da escrita.
Afinal, porque se escreve? Há uma multiplicidade de respostas. Umas mais
retóricas, outras mais poéticas, mas, em todas elas, há uma premente
necessidade de explicitar algo de incomunicável. Note-se, neste ponto, que me
estou a reportar a Escrever,
não a escrevinhar, e ainda menos a modus
vivendi (por outras palavras, aumento significativo de saldos bancários).
No que me concerne, escrevo por sentir uma incomodidade, como se tratasse de um
imperativo ético. Dito de outra forma, é como se saldasse uma dívida com um
outro eu, ao permitir-lhe comunicar.
Alguém uma vez disse que os livros deveriam vir sem o nome do autor (Lobo
Antunes), não podia estar mais certo. Porque essa voz que comunica nos livros
irrompe, quase sempre, do insondável de nós.
Na sessão de autógrafos do meu primeiro livro (Olhei
para Trás e Sorri…), um cavalheiro aproximou-se de mim, para
que lhe rabiscasse o meu nome, e disse-me o seguinte: Da vista de olhos que já dei pelo seu livro, sinto que esta história já
o habita há muito. Escusado será dizer que fiquei siderado, perante tamanha
sensibilidade. Embora escreva no silêncio, e sempre de madrugada (sou incapaz
de escrever de dia), procuro aproximar o ritmo da prosa ao de uma composição
melódica. Por exemplo, o Olhei para
Trás e Sorri… assemelha-se a um Adágio. Uma história de amor
idealizada até a um Absoluto.
Já o meu 2º livro (Queria Rever o teu Rosto ao Entardecer)
tem como elemento catalisador da acção uma música (o Stairway to Heaven, dos Led Zeppelin). A personagem central
encontra-se na fila de trânsito diária, para o seu local de trabalho, e, de
repente, aos primeiros acordes desta extraordinária canção, mergulha no rio da
memória, e relembra quatro dias de uma viagem, com uns amigos, na sua
adolescência. Uma viagem iniciática, e quatro dias que lhe perduram na memória.
E um rosto desejado no sublime do entardecer. Actualmente, tenho-me ocupado com
outro género literário: as crónicas. É curioso, ao redigir as crónicas, também
me habitam melodias, desde, por exemplo, Yann Tiersen, a Leonard Cohen. Como se
o ritmo das palavras fosse uma transposição paradigmática de uma melodia.
Porque, no fundo, o sentir é sempre individual, quer das palavras, quer da
música. E dessa individualidade brota o diálogo que edifica a caminhada da
arte. Por conseguinte, como escritor, a alteridade é um valor supremo. Jamais
procuro condicionar a interpretação de um leitor, num determinado sentido. O
que anteriormente escrevi é, apenas, a minha visão das coisas. Nada mais!
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