Livros do Escritor
quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025
segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025
Para quê??? III
Não
obstante “Aqui jamais serei feliz! Eu não pertenço a este lugar!”, por questões profissionais, teriam de ali permanecer,
no mínimo, um ano, ela, sempre mais maleável, adaptou-se
perfeitamente à sua nova realidade laboral, apesar das distâncias, quantas
vezes as interrogações daquele familiar lhes regressaram (“Vocês têm a certeza? Acham que é uma boa opção? Sempre
aqui viveram… Não sei, até a casa parece-me ser bastante deslocada dos vossos
trabalhos… Mas, claro, é a vossa vida…”), as estradas tão diferentes das
que estavam habituados, sinuosas, estreitas, esburacadas, pejadas de camiões e
camiões, tripulados por trolhas e trolhas, numa lentidão exasperante, a
vegetação em volta negra, contorcida, imóvel, funesta, nas margens imundas era
comum ver-se espelhos de degradação, tudo numa aparência de normalidade,
nalguns casos em idade de estar a caminho de uma escola, ali estava o esplendor
da decadência, tudo ao alcance da vileza de quem se senta atrás de um qualquer
volante, também era recorrente animais trucidados ao longo do alcatrão, tão
distante do que estavam habituados, nem vestígios do
horizonte azul de três décadas, ele reparou, durante dias e dias, no
cadáver de um cão, dilacerado a meio, até as marcas dos pneus se lhe gravaram
nos restos visíveis de carne, acima de tudo um céu pardacento, as coisas do
mundo sem a dignidade de uma sombra, aquele inquietante sentir, como se
caminhasse para uma noite sem prenúncio de amanhã, materializava-se para seu
profundo terror, só à noite usufruíam, e
não na totalidade, dos cento e trinta e seis metros
quadrados do andar que habitavam, quanto aos cento e trinta e seis metros
quadrados do andar superior mantinham-se numa total obscuridade, durante
semanas até se esqueciam, quanto à escada, no meio do corredor, que lhe dava
acesso, limitavam-se a contorná-la, era pungente, sobretudo à noite, abandonar
o carro naquela tão comprida garagem –
parecia um carrito de brincar ali colocado pela
mão de uma criança, havia algo de enternecedor na sua solidão no meio
daquele amplo espaço, dele parecia emanar um grito
envergonhado de desamparo –, as semanas sucediam-se e continuavam a ser os
únicos habitantes daquele prédio, nos outros edifícios também só duas ou três
casas com luzes, se fossem menos destemidos, seriam presas fáceis do medo,
habitavam um de seis apartamentos por vender naquele edifício, nos adjacentes o
número não era maior, descobririam, meses depois, que faltava um papelito ao
trolha responsável por aquilo, é normal na terra dos papelitos, não os
preocupou muito, nenhum deles, por ali, sorria, aos fins-de-semana iam até à
praia mais próxima, se aquilo podia ser denominado de praia, um omnipresente
vento cortante e agreste, o mar apenas um espelho irado e retumbante da
incessante ventania, olhavam as águas e procuravam um resquício do horizonte
azul de três décadas, só na sua memória, quem sabe numa outra existência, isso
doía-lhes, como lhes doía, por vezes, os corpos
caminhavam sem lhes obedecer, no automatismo de cumprir o necessário, sobretudo
ele, o que mais mergulhara na dor (“Aqui jamais serei feliz! Eu não
pertenço a este lugar!”), ela, apesar da maleabilidade, há tanto não sorria,
o asco foi-lhes crescendo em relação a tudo, aos cento e trinta e seis metros
quadrados a duplicar, à garagem para três carros, ao facto de serem olhados, pelos locais, como estranhos, uma
indizível, mas tão palpável, barreira, talvez provenientes de um outro
mundo, apesar dos laivos de urbanismo de alguns campónios, uma das piores
misturas possíveis, o olhar deles, derramado em redor, que lhes gritava, sem
verbo, “Parolos, parolos, parolos…”, agudizava-se, tinham, no entanto,
bem presente que por questões profissionais, teriam de ali permanecer, no
mínimo, um ano, tentaram agarrar-se aos pequenos prazeres por ali
proporcionados, apesar de nem vislumbres do propalado bucolismo rural, apenas um
inquietante silêncio em redor, quando almoçavam fora, iam ao mesmo restaurante,
ao menos aí eram recebidos com cordialidade, apesar de, nos primeiros tempos, serem
olhados como estranhos, uma indizível, mas tão palpável, barreira, também
frequentavam a mesma pastelaria, um ambiente mais airoso, quando não rumavam
até à praia mais próxima, procuraram explorar as serranias, anos depois,
perguntar-lhes-iam aspectos sobre essas paisagens e terras visitadas, não
souberam responder, limitaram-se a um desolador encolher-de-ombros, por vezes,
os corpos caminhavam sem lhes obedecer, no automatismo de cumprir o necessário,
tal sucede quando a infelicidade é demasiada para a alma, quatro ou cinco meses
depois, descobriram que o papelito tardava, foram questionar o trolha, talvez
não surgisse tão cedo foi a resposta, abria-se-lhes uma porta, ele não hesitou,
acordaram rescindir tudo, embora mais maleável, ela prontamente o secundou,
também o seu coração oprimido por nem vestígios do horizonte azul de três
décadas, na data combinada lá foram oficializar a rescisão, após tudo acertado,
o trolha olhou-os com curiosidade e “Não ficam com pena de largar uma casa
daquelas? Aquilo é um palácio! Aposto que lá em baixo não há disto! E, se houver,
imagino o preço!,” ele não se conteve, a frase saiu-lhe pronta “Sabe,
preferia uma cave, lá em baixo, como disse, com um quarto e uma casa-de-banho,
a este palácio…”, viraram costas e saíram, os lugares de onde não nos
despedimos são os que nos lembram dor, na geografia existencial de ambos este
foi um deles, de madrugada chegaram, de madrugada partiram, uma aura de
pesadelo, não fossem as cicatrizes na alma que ainda hoje perduram, tiveram
indubitavelmente o benefício de cedo aprenderem a lição, cento e trinta e seis
metros quadrados divididos por uma sala, cozinha, três quartos e duas
casas-de-banho, a meio do corredor, uma escada para o andar de cima, pois,
tratava-se de um duplex, um espaço-aberto
precisamente com a dimensão do andar inferior, iluminado por duas amplas
janelas modernas, “Para quê???”
quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025
Para quê??? II
Há uma
questão que nos assalta, durante a vida, pelo menos três vezes, ele
experienciou-a, assim que estacionou o carro, naquela tão comprida garagem – parecia um carrito de
brincar ali colocado pela mão de uma criança, havia algo de enternecedor na
sua solidão no meio daquele amplo espaço, dele parecia emanar um grito envergonhado de desamparo –, pela primeira vez (“O que fui fazer à minha vida?!”), viveu
este drama no silêncio de si, embora lhe denotasse um entusiasmo contido, como
se caminhasse por terrenos desconhecidos, não se podia permitir inquietá-la com
os seus dramas, a mudança levou-lhes cerca de metade das férias, o restante
seria para se adaptarem, sentiram-se, desde o primeiro instante, olhados, pelos
locais, como estranhos, uma indizível, mas tão palpável, barreira, talvez
provenientes de um outro mundo, apesar dos laivos de urbanismo de alguns
campónios, uma das piores misturas possíveis, que infelizmente foram
conhecendo, também eles, em verdade, não disfarçavam o olhar, derramado em
redor, que lhes gritava, sem verbo, “Parolos, parolos, parolos…”, assim
se materializava uma latente hostilidade, os regionalismos e a pronúncia, em
múltiplas situações, deixavam-nos atónitos, ela sempre mais maleável em se
adaptar, ele sozinho perante uma questão que o ameaçava submergir (“O que fui fazer à minha vida?! O que fui fazer à minha
vida?! O que fui fazer à minha vida?!”), guardou-a, por enquanto, para si,
não queria, nestes momentos iniciais, turvar horizontes, passada uma semana, a
penúltima das férias, ele “Que dizes de irmos passar a última semana lá…
Assim, aproveitamos para rever…”, a luz pela face dela foi esclarecedora,
essa ideia já a habitava, na manhã seguinte, puseram-se ao caminho, assim que,
pelo retrovisor, a urbanização nova, bastante jardinada, prédios baixos,
somente dois andares, sentiram-se rejuvenescer, sorrisos espontâneos pelos rostos,
entre eles o diálogo aligeirava-se, e cada um, de si para si, orava para que
essa semana se tornasse eternidade, compreenderam dolorosamente que ali não
queriam regressar, após mais de duas horas, à sua frente, o mar de três décadas
recebia-os sob a luz alegre e estival de Agosto, sentiu
um gélido metal trespassar-lhe o coração, olhava aquele
horizonte azul de três décadas, pela primeira vez, como forasteiro, a dor
provinha de, finalmente, compreender que aquela é a sua casa, à vista do mar de
três décadas, da luz alegre e estival de Agosto, de lhe vislumbrar dor pelo
rosto, ela pousou a mão sobre a dele, procurou suavizar a dor de um coração
trespassado, aquietar-lhe uma dor tão desabrida, entre falanges murmurou-lhe que
haviam de corrigir tão grosseiro erro, a eternidade desconhece o tempo, essa
semana acabou por se lhes afigurar um instante, uma ida à janela para ver que
tempo lá fora, ou nem isso, regressaram de noite, nela, agora, uma certeza
pétrea de caminhar para uma noite infinda, só o ruído do motor atenuava o
silêncio doloroso entre eles, três horas depois – a contrariedade foi
proporcional à velocidade –, ele a sair do carro para abrir a garagem, de novo,
o grito envergonhado de desamparo do carrito de brincar ali colocado pela mão
de uma criança, o prédio ainda só por eles ocupado, nos outros edifícios também
só duas ou três casas, como lhes custou subir aqueles degraus, abriram a porta
e nem memória de “Meu Deus! É enorme… E lindíssima…”, nada, deixaram-se
cair na vasta cama que haviam comprado, entre muitos outros móveis, adormeceram
somente pelo cansaço, um sono com as portas totalmente fechadas ao sonho, o dia
seguinte era o último das férias, quando ele despertou, deixou-a dormir, e foi
até à ampla varanda da sala, em frente tinha outro prédio, de dois andares, a
uma distância razoável, não, por ali não haveria sombras de betão que o
asfixiassem, as sombras já nele se alojaram, olhou o horizonte possível, as
copas de umas árvores na lonjura, até lá o indefinível entre a modernice da
urbanização e o rústico de casebres desalinhados pela paisagem, fechou os olhos
e concluiu “Aqui jamais serei feliz! Eu não pertenço a
este lugar!”; talvez
uma das mais dolorosas inferências (“Aqui jamais serei feliz! Eu não
pertenço a este lugar!”), tentou contrariar, uma vez mais, com as copas de
umas árvores na lonjura, surgiram-lhe negras, contorcidas, imóveis, funestas, nem
vislumbres do propalado bucolismo rural, apenas um inquietante silêncio em
redor, não estava, de todo, familiarizado com tal, havia sempre um rumorejar à
sua volta, nem que fosse o trânsito – como se um fenómeno natural –, fechou os
olhos e repetiu para si “Aqui jamais serei feliz! Eu não pertenço a
este lugar!”; olhou
o céu e mais lhe pesou o pensar, nem vestígios do horizonte azul de três
décadas, só na sua memória, quem sabe numa outra existência, mantinha-se pardacento,
as coisas do mundo sem a dignidade de uma sombra, e o silêncio a
intensificar-lhe os ecos interiores, era uma alma desarrumada, são as únicas
que procuram a lonjura, possivelmente aí serenem os seus inclementes gritos, reflectiu
na dignidade dela em não partilhar o seu sofrimento, também concluíra há dias
suficientes “Aqui jamais serei feliz! Eu não pertenço a este lugar!”, os
cento e trinta e seis metros quadrados, do andar de cima, estavam ao abandono, os
passos da sua imaginação imobilizaram-se, “Aqui jamais serei feliz! Eu não
pertenço a este lugar!,” regressou para dentro, se lá fora as coisas do
mundo sem a dignidade de uma sombra, ele sentiu que as sombras foram aglutinadas
ali, naquela casa, a meio do corredor olhou a escada para o andar de cima, apenas
uma escuridão opressiva, foi até ao quarto, ela ainda dormia, os lábios
levemente sorridentes, talvez, nesses momentos, ainda estivesse num lugar onde
não houvesse noites sem prenúncios de amanhãs.
segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025
sábado, 15 de fevereiro de 2025
Para quê??? I
Foi um acaso a levá-los até ali, há quem lhe chame destino, facto é que, de repente, estavam perante um
sonho há muito ansiado, não regressaram sem,
pelo menos, demonstrar interesse e verbalizar um acordo, no regresso, entre
eles, até o diálogo se agilizou – os silêncios, por vezes, instalados dentro do
carro, atirados para bem longe –, planos e mais planos, aos conhecidos gabavam,
exaustiva e repetidamente, a sua recém-descoberta, e futura aquisição,
sublinhe-se, a temática das conversas não ia muito para além disto, houve quem
se afastasse, por fastio, cansaço, até por inveja – um dos aspectos mais
recorrentes e simultaneamente tão subvalorizado –, cerca de um mês depois,
daquele acaso, há quem lhe chame destino, que os levou a estar perante um sonho
há tanto ansiado, a temática das conversas perdurava, até porque o acordo verbal passaria a escrito, aqui um familiar
resolveu intervir (“Vocês têm a certeza? Acham que é uma boa
opção? Sempre aqui viveram… Não sei, até a casa parece-me ser bastante deslocada
dos vossos trabalhos… Mas, claro, é a vossa vida…”), há
fases, nesta caminhada, em que a surdez é por demais gritante, pareciam
possuídos, sob uma inquietante hipnose, existem quedas que silenciosa e
pacientemente nos aguardam desde sempre, com o seu carácter de inevitabilidade,
e como doem, a questão não é se nos conseguimos reerguer, mas se continuaremos
a caminhar da mesma forma, pois, é impossível, como mais à frente veremos pela
história deste casal, assim foi, certa manhã, de fim-de-semana, começaram a
mudança de casa e de terra, há muito ouviam falar das vantagens da vida no
interior, a tão propalada qualidade de vida, a pureza dos ares, horizontes sem
sombras de betão, ausência do inferno no trânsito, filas e filas intermináveis
em horas-de-ponta, mais tempo para usufruir dos aspectos singelos da vida, a
qualidade na alimentação, o preço das casas tão distinto da capital, tal como
as suas dimensões, foi numas férias de província, que um acaso os levou até
ali, há quem lhe chame destino, facto é que, de repente, estavam perante um
sonho há muito ansiado, uma urbanização nova, bastante jardinada, prédios
baixos, somente dois andares, “Olha, tem ali um vendedor. Gostavas de ver?
Já agora, saber os preços, para vermos a diferença…”, há questões, momentos
se quisermos ser mais precisos, de que tão amargamente nos arrependemos, como
ele se lastimaria, ainda hoje lhe perduram cicatrizes na alma, “Sim, porque
não, estaciona aqui…”, em verdade, era uma vendedora, uma campónia com laivos de urbanismo, uma das piores
misturas possíveis, dos sapatos ao cabelo nada se coadunava, imaginem uma
personagem usar um elmo medievo e umas chuteiras, exagerado o quadro, mas foi
como se lhes afigurou esta figura, além de um notório esforço para disfarçar a
ruralidade das sílabas emitidas, para não dar a volta ao edifício do ponto onde
estavam, ela resolveu entrar pela garagem, individual para cada apartamento,
não contiveram o seu espanto pela dimensão da garagem, “Dá para três
carros!”, “E ainda para arrumar muita coisa…”, a campónia recrudescia,
afinal conseguia soltar exclamações aos citadinos, subiram ao segundo-andar,
cento e trinta e seis metros quadrados divididos por uma sala, cozinha, três
quartos e duas casas-de-banho, a meio do corredor, uma escada para o andar
superior, pois, tratava-se de um duplex, um espaço-aberto precisamente com a dimensão do andar
inferior, iluminado por duas amplas janelas modernas, ela, sobretudo, não
continha as exclamações, “Meu Deus! É enorme… E lindíssima…”, os acabamentos
do mais moderno que viram, campónios com laivos de urbanismo, algo deveras
comum, como se um imperativo complexo o facto de se ser nado e habitante no
campo, não regressaram sem, pelo menos, demonstrar interesse e sublinhar um
acordo verbal, duas semanas depois, passaria a escrito, aproveitaram um fim-de-semana
para cumprirem com a palavra dada, revisitaram a casa, pelo imaginar dela construía-se
a decoração de cada uma das divisões, ele preocupava-se com a lonjura dos
horizontes avistados das varandas, tão distante das sombras de betão que o
asfixiavam, ali, pensou, “serei feliz”, houve um aspecto a inquietá-lo, embora
logo o soterrasse, um inquietante silêncio, não estava, de todo, familiarizado
com tal, havia sempre um rumorejar à sua volta, nem que fosse o trânsito – como
se um fenómeno natural –, fechou os olhos e repetiu para si “aqui serei
feliz,” ela partilhou-lhe os passos da sua imaginação, embora estivessem
aquém de tanta fartura, dúvidas só em como povoar os cento e trinta e seis
metros quadrados do andar-superior, apesar de já idealizar um ligeiro esboço,
ficaram de realizar a mudança durante as férias de Verão, assim foi, venderam a
casa e quase a totalidade do recheio – não foi difícil devido à intensa procura
por um lugar junto ao mar e perto da capital –, e compraram praticamente tudo
novo para esta, anos mais tarde ele acabaria por reflectir no porquê de nunca
se visitar a casa que se tenciona adquirir de noite, obviamente os vendedores só
trabalham durante o dia, mas pelo menos ver como é o lugar onde se morará sob o
manto nocturno, afigurou-se-lhe algo elementar, após quase três décadas a viver
junto ao mar e tão perto da capital, mudaram-se, nessa derradeira viagem
curiosamente o silêncio imperou, ela já em saudades de tudo e por si ecoavam as
frases do familiar (“Vocês têm a
certeza? Acham que é uma boa opção? Sempre aqui viveram… Não sei, até a casa parece-me
ser bastante deslocada dos vossos trabalhos… Mas, claro, é a vossa vida…”), nele
um inquietante sentir, como se caminhasse para uma noite sem prenúncio de
amanhã.
terça-feira, 11 de fevereiro de 2025
domingo, 9 de fevereiro de 2025
Asini dantur paleas et non loquantur
Há uns dias, por imperativos de consciência,
tive de escrever a frase que intitula esta crónica, aproveito para traduzir (“Aos burros dá-se palha e não conversa”), a
uma manifesta jumenta, pelo menos fiquei com a consciência tranquila de ter
realizado a boa acção de 2025: obriguei a BURRA a consultar um qualquer
tradutor; o problema é a impressionante facilidade com que se reproduzem estes
asnos e como estão disseminados por todos os sectores
da sociedade, no entanto, dividem-se entre: os burrinhos (humildes, obedientes, cumpridores…) e os BURROS
(analfabetos-funcionais com laivos de doutorice, a projectar uma imagem de
sapiência tão aquém do seu conteúdo, e com uma pronta opinião sobre qualquer
temática, como se, por um minuto sequer, alguma vez tivessem reflectido sobre a
mesma ou tivessem tal condão: o de pensar! Dissimulam a sua insegurança através
de frases-prontas, proferidas com a devida sonoridade, anseiam por auditório
que ouça as suas boçalidades, de burrinhos (humildes, obedientes,
cumpridores…), claro, e socorrem-se de uma das mais velhas e infames armas da
humanidade: a mesquinha e cobarde maledicência pelas costas! Esta jumenta
cumpre escrupulosamente as três etapas, ninguém chega a BURRA maiúscula por
acaso, mas este actual cenário, inquietante, deveras inquietante, levanta
questões perturbadoras: A quem interessa o multiplicar destes
analfabetos-funcionais? O porquê de estarem disseminados por todos os sectores
da sociedade? Estou para aqui a levantar estas questões, quando a imagem de meu
avô, enxada na mão, como era nodoso o cabo de madeira da enxada, o meu olhar de
criança percebeu-lhe instantaneamente a dureza, mas a abnegação de meu avô, em
levantar a enxada para os céus e regressá-la ao interior da terra, era mais
forte, eu para ali andava, à sua volta, nos meus mundos de criança (que
saudades dos universos da minha meninice), era de tarde, não me recordo de ver
a enxada parada, a certa altura, a impaciência infantil levou-me a
perguntar-lhe as horas, esperei que olhasse o pulso, para
meu espanto, olhou as alturas, pois, foi mesmo isso, para meu espanto,
olhou as alturas, fitou-me e anunciou: “São cinco e meia!” Antes que
pudesse retorquir algo, “Daqui a trinta minutos, o sino da igreja anunciará
as seis da tarde,” quando regressávamos, a enxada, com o seu nodoso cabo,
pelo ombro do meu avô, a certa altura, ouvimos o ecoar da alma através do sino
da igreja, prontamente olhei o meu avô, há pouco perguntei-lhe as horas e
limitou-se a vislumbrar as alturas, percebeu o meu insistente olhar, mas
permaneceu com o horizonte na sua marcha compassada, a própria terra parece
suspender o seu respirar para ouvir o ecoar do sino de uma igreja, nada lhe
disse, o olhar tudo verbalizou, quem, por estes dias, consegue dizer as horas
vislumbrando as alturas? Em verdade, quem ainda olha as alturas? À minha volta,
num absurdo crescente, vultos e mais vultos debruçados para um rectângulo, como
se por aí o Sentido, as ansiadas respostas a intemporais questões, o desejado
Graal, um fenómeno infelizmente transversal a todas as idades, não há lugar,
por estes dias, onde não se veja, pelo menos, três ou
quatro sujeitos amordaçados pelo rectângulo, isto é um facto, expressões
concentradas de pensadores-de-pacotilha, os dedos num frémito, por vezes só a
boca-aberta lhes transparece a real boçalidade, nem um som emitem, nada,
somente o vazio de uma profunda e impronunciada estupidez, ali estão, de
trela, ainda as compram e exibem com indesmentível orgulho, sublinhe-se serem bem
caras, chegam aos quatro algarismos, para ali ficam, sem compreenderem que
estão sob um total controle, a ironia destes dias é que os servos compram e
exibem orgulhosamente os seus grilhões, algo inédito na história do homem,
creio que vivemos o período mais obscuro da História, há quatro ou cinco anos,
por duas vezes, ocorreu um teste, mundial, à inteligência humana, de forma
expectável a maioria reprovou, por esses dias dei por mim a pensar que, afinal,
continuávamos na Idade Média, mas não, no período medievo olhavam os inimigos
nos olhos, aqui acreditaram no invisível propalado pelo regime, concluí que a
humanidade, bem vistas as coisas, persistia nas cavernas, que diria meu avô se,
ao entrar num lugar do hoje, visse, pelo menos, três ou quatro sujeitos
amordaçados por um rectângulo, expressões concentradas de
pensadores-de-pacotilha, os dedos num frémito, por vezes só a boca-aberta lhes
transparece a real boçalidade, nem um som emitem, nada, somente o vazio de uma
profunda e impronunciada estupidez? Felizmente não assistiu a esta decadência,
eu não tive tal ensejo, o meu espírito já passou do nojo à compaixão, ignoram
que lhes controlam a posição geográfica, com quem falam, de quem gostam, quem
detestam, as preferências comerciais, ouvem-lhes as conversas, se preciso for,
são filmados, fotografados, manipulados a consumir este ou aquele produto,
dormem com a trela ao lado, mal acordam correm, numa cegueira obstinada, ao seu
encontro, dia após dia, durante meses, por fim, anos, ouvi em tempos um Mestre
(felizmente tive o privilégio de os encontrar durante esta minha caminhada)
afirmar que estes rectângulos: “Retiram duas dimensões essenciais ao homem:
Espaço e Tempo.” Ouvi esta frase há vinte e cinco anos! Quem conseguir
compreender o seu alcance, faça a sua análise! Profética, diria eu, um vulto
inclina-se para aquilo e talvez a sua alma por ali se aprisione… Infelizmente,
nesta caminhada, as BURRAS foram tão plurais, e os MESTRES tão desoladoramente singulares,
no entanto, a sua LUZ ofusca as tão plurais ignorância e maldade, tive igualmente
a felicidade de, muito cedo, saber o quão nodoso é um cabo-de-enxada, o quanto
custa levantá-lo para os céus, e, sim, é verdade, sempre que me perguntam as
horas, olho as alturas, porque alguém lá atrás me ensinou que não há perguntas
sem resposta.
sábado, 8 de fevereiro de 2025
terça-feira, 4 de fevereiro de 2025
Luar de Inverno III
Perante
a coreografia da hospedeira-de-bordo, com as cansadas normas de segurança, para
quem está habituado a viajar na companhia das nuvens, ambos ficaram atónitos,
ela, de início, quase em risos, o pudor lá prevaleceu, para se manter
impassível, apesar de questionar o seu crédito, ele optou por imaginar, em caso
de desastre, se aquelas recomendações bastariam, assim que as luzes se
desligaram, uma voz sem corpo ordenou a colocação dos cintos-de-segurança, o
aparelho começou a rolar na pista numa crescente velocidade, até que, até que,
as rodas se desprendem da terra, um instante imperceptivelmente sentido por
todos, a ânsia impronunciada e secular de o homem tactear os céus, está gravada
na alma de cada um, são os que mais olham as alturas a sentir gratidão pelo
adeus à terra, em baixo só contemplaram luzes e luzes, um
carro ali, outro acolá, numa angustiante solidão, até que o mundo se tornou um
oceano de trevas, lamentaram, sem verbalizar, a hora do vôo, tanto que ela
desejava ver o seu quotidiano das alturas, para lhe perceber a insignificância,
algo lhe ditava esta necessidade, compreender a pequenez das suas atribulações,
no entanto, lá em baixo, só luzes e luzes, um carro ali, outro acolá, numa
angustiante solidão, até que o mundo se tornou um oceano de trevas, aí a
janelita perdeu qualquer interesse, logo que as luzes se reacenderam, ela só
vislumbrava o seu reflexo, bem como o latente vestígio de angústia que a
acompanhava há uns bons tempos, endireitou-se no banco, ele recostara-se de
olhos fechados, embora a impossibilidade do sono lhe fosse certa, por vários
motivos (as luzes, o incómodo do lugar, saber que,
tarde ou cedo, ela falaria, os vestígios de adrenalina, ainda em si, pela
odisseia no aeroporto…), pois, saber que, tarde ou cedo, ela falaria, “Não
tens frio?”, da sensação térmica ao desconforto das cadeiras, da fadiga ao
tédio de ali permanecer, no mínimo, por mais quatro horas, tentou perceber se
ela “Não vais tentar dormir?,” a prontidão da resposta liquidou-lhe
todas as esperanças “Achas que conseguia? Isto é tão desconfortável! E não
páram de cirandar a caminho das casas-de-banho,” um facto, realmente não
havia minuto em que sentissem alguém a arrastar-se, pelo exíguo corredor,
ladeado de assentos e assentos, a caminho de um inglório destino, uma ideia
começou a materializar-se-lhe em palavras “Afinal, as aldeias de
pais ou sogros são destinos bem apelativos para as férias,” em menos de três horas chegam a qualquer uma, o
tempo de aeroporto, há que somar o vôo, se não houver atrasos, estava perdido
nestes pensamentos enquanto um saudoso sentir o invadia, quando uma voz
longínqua “Querem café, água ou sumo?”, ela
antecipou-se-lhe “Não, muito obrigada,” nem oportunidade teve de se
manifestar, serviu para o despertar ligeiramente, ainda lhe ocorreu dizer em
surdina “Afinal, as aldeias de
pais ou sogros são destinos bem apelativos para as férias,” mas algo o
dissuadiu, uma voz mecânica a anunciar uma zona de turbulência, prontamente
deram as mãos, a ternura desponta nos pequenos nadas da existência, no entanto,
como a enriquece, passava das seis da manhã locais quando aterraram, “Não
sei como vamos conseguir descansar…”, “E daqui a pouco amanhece!,” o olhar
dela ao nível dos sapatos, tudo tão diferente do imaginado, além de uma
monumental dor de cabeça, de repente, pelo pensar, a imagem daquela
pindérica lá do seu trabalho, a que não pára de correr o cão, nas fotos que
publicava nem vestígios de cansaço, de olhares ao nível dos sapatos, da gigantesca
fadiga pelas odisseias aeroportuárias, nada, apenas cenários idílicos e
sorrisos solares, como se o sonho lhe acompanhasse os passos, chegaram ao hotel
já o sol fazia nascer sombras a Oeste, entre eles um acordo sublimado de poupar
o verbo, a energia escasseava, ele, num derradeiro assomo de energia, para um
dos recepcionistas “O pequeno-almoço até que horas é?”, dez e
trinta, disponham de três para se estender numa cama e fechar os olhos, antes “Põe
o despertador! Não vou perder o pequeno-almoço nem o resto do dia! Temos de
gozar isto e tirar o máximo de fotos possíveis! Para aquela pindérica e todas
as outras verem quem é quem…”, talvez, aquando do regresso, alguém lhes
recorde que viram tudo sempre através de um écran, mas isto é uma
possibilidade, porque esse alguém, quem sabe, tenha optado pelo
silêncio.
Pedro
de Sá
(04/02/25)