Livros do Escritor

Livros do Escritor

segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Nuvens passeantes pelas águas

 


Desde criança sempre tive esta coisa de me perder a olhar horizontes, talvez o sonho de além conseguir pousar a bagagem da minha alma, os meus avós tinham um quintal rodeado de muros, quando por ali ficava, de imediato subia uma escada-de-madeira encostada num desses muros, ali ficava, o necessário, a olhar para Leste, hoje sei que essa escada-de-madeira estava encostada ao muro virado para Leste, à noite, pelo vidro da janela, pouco via para além dos muros, uma chaminé ali, o telhado de uma casa acolá, pouco mais, foi então que resolvi pegar numa enxada, apesar de pouco mais de dez anos, senti-me capaz de mudar o mundo, com uma década, o sonho acompanha-nos o respirar, e comecei a escavar o centro do quintal da casa dos meus avós, sabia, de antemão, que logo ecoaria um brado de minha avó, sempre atenta ao acontecer, apesar da dificuldade no manuseio da enxada, pelo comprimento associado ao peso para os bracitos de um miúdo de dez anos, não me demovi de a levantar aos céus para logo atingir  o terreno visado, logo à primeira investida percebi a dificuldade da empreitada, o terreno era duro, a enxada quase ricocheteava, porém, eu estava resoluto, nada me demoveria, senti a rudeza do cabo de madeira da enxada, de certa forma, a vida apresentava-se-me, continuei a levantar a enxada aos céus e a mergulhá-la na terra, repetidamente, até que o expectável brado de minha avó me chegou, tive de largar a enxada e correr ao seu encontro para me justificar, nada podia perigar o meu projecto, após lhe apresentar as minhas explicações, do que tinha idealizado para o centro do quintal, li-lhe, pelas expressões, primeiro, espanto, nunca havia pensado em tal coisa, depois, alegria, por ver o neto materializar a ideia, já nessa altura, sabia que, quando um adulto não verbalizava o “Não”, que era um “Sim” impronunciado, voltei a pegar no cabo da enxada e, uma vez mais, a trazê-la à terra, e outra, mais outra, não sei quanto tempo passou, ser-me-ia hoje impossível precisar, o tempo da meninice tem outro respirar, pena que o desaprendamos, sei que, boa parte do quintal já na sombra, parei para, com indesmentível orgulho, observar metade da minha obra, só faltava a outra, espalhei a terra revolvida, funcionalidade e estética sempre me nortearam, e a educação, claro, por fim, só faltava saber se… Balde após balde fui enchendo de água a vasta extensão de terra revolvida (Ou seria apenas uma cova? Uma singela poça d`água? A percepção da meninice tem outro respirar, pena que a desaprendamos…), para meu júbilo, a água ali se mantinha, com o queixo pousado na enxada, fiquei a admirar a minha obra, faltava algo, sim, claro, de que me adiantava ter um lago se não o podia atravessar? Logo procurei uma tábua suficientemente comprida para o atravessar, e tijolos onde pudessem assentar as extremidades, uma ponte sem altura não tem dignidade, olhando para trás, muito me admira a quantidade de critérios estéticos que me habitavam, assim foi erigida a ponte, que tão orgulhosamente atravessei múltiplas vezes, embora todas me parecessem a primeira, no entanto, a ideia do lago tinha um propósito mais recôndito, se à noite, pelo vidro da janela, pouco via para além dos muros, uma chaminé ali, o telhado de uma casa acolá, pouco mais, após o jantar, iluminado pela lareira (Há quanto não tenho jantares iluminados por lareiras? A comida não sabia a pressa… O verbo alongava-se sob aquela luz bruxuleante… O tempo, ali, não tinha por onde entrar… Sob aquela luz, alimentada por dois ou três toros, cadenciada por uma melodia de crepitares avulsos, a Eternidade foi-me apresentada…), corri para o vidro da mesma janela do ontem, mas não olhei para cima e sim para as águas, lá em baixo, que espelhavam, em verdade, sonhos por descobrir, volta e meia, uma nuvem passeante obscurecia uma estrela, a água turvava-se, o meu olhar, nem por um segundo, se desprendia das águas, a ponte lá estava, reflecti no facto de aguardar a nuvem passeante para reencontrar o brilho da estrela, pois, através daquele vidro, aprendi o que era viver.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024


 

Nocturnos


Um dos encantos da noite, desde miúdo, reside no fascínio de olhar as janelas iluminadas em volta, como se, por aí, o lar que nunca encontrei entre as paredes onde habitava, como se, por aí, o paraíso que sempre procurei, ou seja, o lugar onde me compreendessem, até hoje o procuro, duvido que o encontre, pelo menos, caída a noite, vou até uma janela e olho as luzes das casas em volta, tudo numa aparente serenidade, a dor do mundo parece ter partido para um lugar demasiado longínquo, onde nem a imaginação a alcança, quando olho as janelas iluminadas em volta, faço-o no melodioso silêncio nocturno, jamais com música, seria supérfluo, basta-me, de facto, o melodioso silêncio nocturno, este meu lado sonhador felizmente ainda não me deixou, se tivesse sucedido, ser-me-ia impossível redigir estas linhas sobre janelas iluminadas em volta, ainda hoje, caída a noite, olho as luzes das casas em redor, a minha atenção demora-se sobretudo onde não vislumbro o écran que tudo devora em redor (Quantos anos de verbo, numa família, são calados? Quantos estranhos se edificam, entre paredes, à volta desse écran? Quantos sonhos ficam por partilhar? Quantos não partiram sem tempo para um gesto de adeus?), pois, como dizia, a minha atenção demora-se sobretudo em janelas onde não encontro o tremeluzir desse écran, algo de encantatório, para mim, nesses espaços, um eco de poesia, uma musicalidade  prenunciada, talvez porque, entre paredes, esse écran, que tudo devora em redor, imperasse, todos o reverenciavam, por algum motivo tinha uma posição central na sala, o lugar de uma divindade imposta para todos adorarem, foi, mais ou menos, nessa altura que se iniciou, em mim, a compreensão de tal absurdo, devia haver lugares, neste mundo, onde me compreendessem e a dor tenha partido para uma demasia longínqua, onde nem a imaginação a alcance, continuo a acreditar, quando olho janelas iluminadas em volta, que por ali o sentir encontre a palavra, e o que nos habita encontre eco num outro, lembro-me de, numa janela iluminada, ver um sujeito à secretária, já de madrugada, calava a obscenidade branca de folhas numa escrita resoluta, sabia por onde caminhava, a perspectiva que se me oferecia não permitia ver-lhe o rosto, a divisão apenas iluminada pelo candeeiro sobre o tampo da secretária, fascinava-me olhar a caneta, linha após linha, a formar um todo só por ele conhecido, eu, incrédulo, assistia a um acto demiúrgico, senti-me um privilegiado, talvez um romance, ou o relato das suas múltiplas viagens pelo mundo, um viajante cansado que, por fim, ali assentou, e agora resolveu verter, em papel, madrugada após madrugada, à luz daquele candeeiro sobre o tampo da secretária, o tanto que vivenciou, poesia não me pareceu, sim, era prosa, disso tenho a certeza, escrevia embalado pelo melodioso silêncio nocturno, nunca me ocorreu, durante o dia, olhar para aquela janela, de certa forma compreendo-o, a luz do dia turva os pormenores, as janelas tornam-se herméticas, a vida parece ter partido para um qualquer outro lugar, como se tivesse perdido interesse pelos que caminham sob o sol,  numa outra janela iluminada, havia um casal de velhotes, cada um sentado no seu cadeirão, o écran tremeluzia, embora não parecesse emitir qualquer som, como se, no fundo, para aquele casal de velhotes, o próprio écran, em silêncio, constituísse a sua janela iluminada, ela tricotava numa elegância serena, a compreensão do desperdício da fúria e das pressas, ele com um jornal ou uma revista, percebia-se-lhes diálogo, o silêncio do écran contribuía para esta convicção, volta e meia um gato pulava, numa elegância serena, a compreensão do desperdício da fúria e das pressas, para o braço do cadeirão onde ela estava, nunca o vi pular para o cadeirão onde o velhote com um jornal ou uma revista, a visão do gato, entre os velhos, conferiu o calor que me permitiu soletrar “lar” àquela janela iluminada, a vida por ali ainda se mobilizava, numa elegância serena, a compreensão do desperdício da fúria e das pressas, certa madrugada, uns andares mais abaixo, pela iluminada janela, retive-me a olhar um casal, de pé, a conversar com o filho, sentado, olhava a carpete, teria a minha idade nessa altura, adolescente, havia seriedade nas expressões dos pais, o filho com a carpete, mas de ouvido atento, percebi diálogo, jamais discussão, quiçá um daqueles momentos decisivos, nesta caminhada, em que os pais são cruciais para, no amanhã, o adulto não coxear, um pormenor ressaltou-me de imediato, apesar de permanecerem em pé, pai e mãe jamais cruzaram os braços, por aquela janela iluminada censura e derrota não tinham espaço de entrada, talvez se, o adolescente levantasse o olhar da carpete, concluísse o mesmo que eu.

domingo, 22 de dezembro de 2024

Indulgência

 


Dizia-se, por aqueles lados, nunca lhe ouvir um insulto, uma ofensa, um azedume, um grito, uma reprimenda, o timbre sempre discreto, como se um apelo à compreensão e ao serenar, vivia num rés-do-chão, não se lhe conhecia outros paradeiros, com o seu canário, saía de casa apenas para as compras ou a obrigatória Eucaristia-Dominical, pouco mais, se alguém apelasse à sua ajuda, por este ou aquele motivo, nem hesitava, era uma casa modesta, sala, cozinha, quarto e casa-de-banho, para ali se mudaram, ela e o marido, há pouco mais de três décadas, houve quem dissesse que tinham muitas posses, no entanto, o desespero da luta contra o vício do único filho quase lhes levou tudo, até a saúde do marido, partira há dezoito meses, o filho partiu bem antes, há pouco mais de três décadas, tentaram de tudo (clínicas de desintoxicação, mudança de casa para ver se outras companhias, colégios internos, curandeiros de vária ordem, ameaça de deserdar…), cada dia mais magro, pálido, alienado, só se alimentava da crescente subtracção da alma, o negócio do pai minguava simultaneamente, a energia não dava para tantas frentes de batalha, ela tentava compreender o porquê de o filho tanto querer subtrair a alma, sem um insulto, uma ofensa, um azedume, um grito, uma reprimenda, o timbre sempre discreto, como se um apelo à compreensão e ao serenar, talvez equacionasse até que a falha pudesse ser sua, neste ponto, o pai mais radical, sabia que o mimo não augura bons destinos, certa madrugada, o mal quase sempre espeita na obscuridade, a insistência demasiada do telefone, um grito ameaçador de todos acordar por aqueles lados, contrariado foi o pai atender, sem antes o desencontro dos pés com os chinelos, o soalho a relembrar-lhe Inverno e madrugada, levanta-se acompanhado de um enorme bocejo e com a convicção de que as notícias seriam tão ou mais sombrias que a própria madrugada, ela acordara ao mesmo tempo, mas deixou-se estar, não quis agudizar o seu contrariado erguer, deitada talvez enfrentasse melhor a obscuridade que se avizinhava daquela insistência demasiada do telefone, um grito ameaçador de todos acordar por aqueles lados, ouve o silenciar do grito ameaçador, ele, a tentar suavizar a rouquidão e também o receio da prenunciada obscuridade, com um “Sim…” deveras arrastado, não ouviu o auscultador a ser devolvido à procedência, quando olhou para a ombreira do quarto, já o marido lá estava, se lhe perguntassem quantos minutos passaram desde o deveras arrastado “Sim…”, se dois, três, quatro ou cinco minutos, jamais conseguiria responder, para ela, o tempo suspendera-se, as palavras foram proferidas pelo olhar, lágrimas e gestos, há lugares onde a palavra é um excesso, o funeral foi três dias depois, tanto quis subtrair a alma que acabou por abandonar o corpo, ele sabia há muito quem pôs este veneno a correr pelas ruas, amaldiçoou-os entredentes, no dia em que foram enterrar o que seria o seu futuro, uma vizinha coloca-lhe a mão no ombro e “Depois disto, ainda acreditas em Deus?”, ela, sem nunca levantar o olhar dos pés, com a suavidade possível na voz, “Mais do que nunca! Ela partira há muito daqui… Só o corpo se arrastava por este lado… Há maior gesto de misericórdia?”, não sabemos se a vizinha atingira o alcance das suas palavras, no mínimo terá lido incongruência fruto da dor, há muito ela compreendera a essência  das coisas, desejo e acontecer raramente coincidem neste caminhar, por conseguinte, ela simplesmente resolveu sorrir e confiar em Deus ou no destino, como lhe queiram chamar, embora fosse crente, apesar de a vida tanto a subtrair, pelo menos jamais lhe conseguirá tirar Deus, como esse facto lhe estruturou a fé, e como a fortaleceu, passou a olhar à sua volta relativizando minudências que tanto perturbam e enraivecem os outros, teve uma fase da vida em que lera muito, os seus pais chegaram a preocupar-se, achavam-na distante da realidade, era precisamente o oposto, tacteava-lhe a essência, entre milhares e milhares de frases, houve uma que lhe norteou os passos de cada dia (“Um sorriso tudo grita e tudo cala”), nunca se lhe viu uma lágrima, eram dolorosamente interiores, também houve quem afirmasse que as secara muito cedo, aquando de uma partida… Mas são suposições, há dezoito meses, pouco depois da partida do marido, numa terça-feira de manhã, a campainha, era uma senhora, com uma pasta, uma fala delicodoce que logo a desagradou, embora o sorriso lhe fosse indestrutível (“Um sorriso tudo grita e tudo cala”), a chamar a atenção para os seus quase oitenta anos, o facto de viver só, os benefícios da sua entrada num lar, o acompanhamento diário da sua saúde, a interacção com os outros idosos, a segurança, não permitiu que a pasta e a fala delicodoce transpusessem a porta, percebeu logo ao que vinha, apenas lhe perguntou: “Cometi algum crime para ser institucionalizada?” A verborreia delicodoce esmoreceu um pouco, deixou-lhe um cartão, com o contacto, para qualquer eventualidade, logo depositado no lixo doméstico, há muito ela compreendera a essência  das coisas, desejo e acontecer raramente coincidem neste caminhar, por conseguinte, ela simplesmente resolveu sorrir e confiar em Deus ou no destino, como lhe queiram chamar, foi até à janela da cozinha, dava para o estacionamento da praceta e apanhava uma das extremidades do campo de jogos, ali estavam um pai com o filho pequenito num triciclo, nunca os vira por ali, deixou-se estar mais um pouco a observá-los, inspirou longamente, pois, tudo no mundo parecia estar no seu lugar.

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Desolação IV

 


Ele já se inclinava para o regresso, no entanto, ela ainda com o areal, onde uma mãe, num zelo só possível à maternidade, procura o último grão de areia dos pés do filho, este segura um avião de plástico nas mãos, em si talvez o desejo da distância, num último esforço, entrelaça-lhe, com suavidade, os dedos na mão, e tenta erguê-la, para a afastar de um quadro de dor, ela cede, talvez pelo vazio de si, nem meia-dúzia de passos depois, percebe o olhar, uma vez mais, no areal, há vazios, neste caminhar, que levaremos connosco, as minudências acabam por despertar o verbo, concordaram que gente e barulho a mais, quando ontem tudo parecia no seu lugar, é um facto: ontem tudo parecia no seu lugar; ambos sabiam a razão, tantos anos depois, do seu regresso ao local das primeiras férias juntos, esta povoação caiada de branco debruçada sobre o mar, embora jamais o verbalizassem, em verdade, procuravam compreender se, entre eles, tudo estaria no seu lugar ou se nem vislumbres de quem foram, quantas vezes um homem e uma mulher se perderam e insistem no equívoco de caminhar juntos, quando olham em direcções distintas passaram a ser apenas uma memória, ela jamais esqueceu, há quem insista em dizer perdoar, o facto “de lhe relembrar os imperativos da existência do hoje: o curso, a urgência de um trabalho, o choque ou desgosto das famílias por tanta imprudência, a escassez de recursos para chegaram dois, mas regressaram três;” o passado sempre ao alcance de um simples olhar, de uma palavra, de um som, da incessante procura por um grão de areia nos pés de uma criança, quem os visse de uma certa distância compreendia-lhes derrota nos passos e no rosto, como se sobre os seus ombros tantos e tantos sonhos sepultados, o olhar dela em si mesma, como se estivesse irremediavelmente presa num lugar ou situação lá bem atrás, curiosamente nunca respondia à primeira, tinham sempre de lhe repetir a questão, os mais próximos, sobretudo ele, temiam problemas auditivos, nada disso, era apenas o tempo de se regressar, ficara irremediavelmente presa num lugar ou situação lá bem atrás, ele, pelo contrário, olhava constantemente em volta, como se na procura de ponto de fuga que lhe permitisse a redenção de si mesmo, já pouco tinham para se dizer, nem espelhos, em volta, encontravam de quem haviam sido, à medida que subiam a rua principal, que atravessa a povoação caiada de branco, com, pelo menos, o triplo dos carros, os passeios sem vagas para mais transeuntes, tão longe das primeiras férias juntos, como se todos, em Agosto, para ali se precipitassem, umas inquietantes e recém-chegadas sombras observam quem passa, ora estão pelos passeios, ora em lojecas com conteúdos manifestamente descontextualizados com uma povoação caiada de branco debruçada sobre o mar, aquando das primeiras férias juntos, há tantos anos, nem vislumbres de tais sombras, pois, nada é por acaso, o possível verde de Sul cedia ingloriamente ao cinzentismo dos trolhas, não há quase lugar, no hoje, onde essas patas imundas não cheguem, essas inquietantes sombras, tragicamente disseminadas por todo o canto, apenas um reflexo de cinquenta-anos de trolhas ao leme, ele limitou-se a verter todo o desprezo pelo olhar, as inquietantes sombras nem um passo para fora das trevas, afinal, estavam onde pertenciam, quando chegaram perto da pastelaria, ele nem perguntou se…, para lá se encaminhou, embora ela o secundasse ligeira, por fim, um espelho luminoso do ontem, ao menos por ali não havia vozes com um timbre solene e, ao mesmo tempo, deveras irritante, tudo como dantes, excepto um ou outro apontamento da denominada modernice, abrira precisamente no ano das suas primeiras férias juntos, muito irreverente para esta povoação caiada de branco debruçada sobre o mar, a dona era, na altura, uma trintona, anafada, um quê de histeria,  com uma dose exagerada de prepotência, de quem sabe ter escolhido o lugar e o negócio certos, acrescente-se o tempo, factor determinante nesta equação, nada havia por ali que se assemelhasse, um conceito simultaneamente de pastelaria, padaria e mercearia, a inegável qualidade e fausta quantidade de produtos, nos meses de Verão, alimentavam as filas à porta, sobretudo de manhã, o entra e sai de veraneantes, sobretudo da capital, era constante, no fundo ali estava um espelho da sua proveniência, demasiados dias, numa povoação caiada de branco debruçada sobre o mar, sem um vislumbre do seu quotidiano, tornar-se-ia fastidioso, como a sujeita, uma trintona, anafada, um quê de histeria, com uma dose exagerada de prepotência, soube trazer-lhes um espelho do dia-a-dia à lassidão das férias, ficaram logo agradados pela disposição se manter - um conceito simultaneamente de pastelaria, padaria e mercearia –, não havia, por ali, vestígios de sombras inquietantes, pelo menos uma trintona, anafada, um quê de histeria, com uma dose exagerada de prepotência, sabia afastar as trevas da sua porta, o ar adocicado também subsistia, de repente, o tempo parecia ter-se suspendido e eles regressavam às primeiras férias juntos, a quem haviam sido, aproximaram-se do balcão, entreolharam-se, ambos sabiam o que pedir: “Um vislumbre de quem foram no hoje…”

Pedro de Sá

(17/12/24)


 

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Rua das Alfazemas

 


Quem morava na rua das Alfazemas? Todo o mundo ali morava, afinal, numa rua cabem os sonhos vivos e enterrados de cada um de nós, logo após o almoço, ela vinha para a janela, ali ficava até à hora da janta, sabia das rotinas de cada um, mas era um saber-lhe amargo, não era isso que a levava até à janela, mas o que já não encontrava por casa, afinal, numa rua cabem os sonhos vivos e enterrados de cada um de nós… Há quanto tempo ela morava na rua das Alfazemas? Foi depois de, sim, foi depois disso, ainda foram remetentes de outras moradas, talvez duas ou três, até que assentaram na rua das Alfazemas, ele partiu há três anos, mais concretamente trinta e nove meses, foi de madrugada, parece-lhe que foi ontem, de repente, algo a chamá-la para o lado de cá das coisas, o telefone parecia contorcer-se para que ela o viesse silenciar, por ter de se socorrer de um candeeiro para lhe alumiar os passos, lá fora, o mundo ainda uma harmonia de silêncios e sombras, o frio do momento fê-la cobrir-se, de imediato, com o robe e valer-se também de um xaile, compreendeu que a vida ainda não recomeçara, pelo contrário, despedia-se, antes de silenciar aquele obsceno grito na noite do mundo, sabia o que ia ouvir, sentiu-o no peito antes do silêncio pelo auscultador levantado, o coração partira de si para um qualquer lado, o pensar uma tela branca, por fim, uma voz mecânica, que mal conseguia disfarçar a total ausência de um calor sentido, informou-a de que o marido se finara, há uns minutos, em paz, o que lhe ficou, desse momento, foi a imagem de um imenso deserto diante de si, nada mais, afastou o auscultador, do outro lado, a voz mecânica persistia no seu desfiar de trivialidades, acalme-se, por favor, queira sentar-se… Quer que lhe mande algum apoio? Está-me a ouvir? Tem a certeza de que está bem? Ouça, infelizmente esta era uma situação expectável… Pense que, ao menos, o seu marido não sofreu… Partiu em paz… Um dia, irá juntar-se-lhe, acredite, lembre-se… Desligou, que sabia aquela voz ou qualquer outra de situações expectáveis e de partidas em paz, não, não se sentou, foi para a janela olhar o céu, há quanto não assistia ao nascimento da vida, tudo se inicia com um tímido alaranjar a Este, uns veios de luz que trazem substância às coisas, e o movimento na terra acompanha os passos da luz, como se tudo fosse um coro imemorial a saudar a vida, pensamentos assim passaram-lhe pelo espírito, saudar a vida, tão longe estava de tais desígnios, um imenso deserto diante de si, nada mais, ainda foram remetentes de outras moradas, talvez duas ou três, até que assentaram na rua das Alfazemas, e dali ele partiu para uma morada incógnita, a última, a por todos conhecida e por todos sempre ignorada, é acometida de um cansaço súbito, cede às horas de sono por cumprir, ao desgosto, à frieza doravante dos lençóis, à solidão impronunciada de cada sombra lá de casa, e um imenso deserto diante de si, agora, lá fora, a luz era demasiada para as cores do seu pensar, não sabe se a luz ou o movimento próprio da vida, talvez fosse o todo, correu a cortina e deitou-se à espera de não sabe o quê, mais de quarenta anos com ele a seu lado, tinha a qualidade rara de ser um edificador de sonhos, em verdade, nunca os alcançava, contudo, assim que se diluíam, logo partia em busca de um outro, assim foi quando de regresso à metrópole, após mais de uma década de África, onde se conheceram, encantou-se com aquela aparente segurança, que mal disfarçava a criança que, até hoje, se recusa a caminhar às escuras pela casa, mais duas solidões originaram um casamento, não há assim tantos anos tudo desaguava em casamento, no que respeita a partilhar vidas, depois começaram as dúvidas, as inevitáveis questões atiradas de fora, a cada instante, como pedras em feridas ainda por cicatrizar, Então, para quando um herdeiro? Não me digam que não está no vosso horizonte? Preferem menino ou menina? Não acham que já está na altura? Estão a deixar para muito tarde… Não vos parece? Assim era, mal saíam de casa, pedras vindas de todo e qualquer lado, algumas bem traiçoeiras, como doíam, ela pensou ser a fonte do problema, não se esquivou, pelo contrário, médico, exames, do seu lado, estava tudo bem, era uma fonte segura, afinal, ele é que… Nunca lhe mostrou qualquer exame, escondeu-os no fundo de uma gaveta sua, de roupa interior, até que, certo dia, resolveu mesmo deitá-los no lixo mais próximo, entre eles nunca houve acusações nem censuras por isto, ela, até hoje, nunca soube se ele tinha consciência da sua infertilidade, talvez sim, mas é apenas uma suposição, é curioso, mais de quarenta anos a partilhar tectos e lençóis e fica tanta coisa silenciada entre um homem e uma mulher, no fundo, ambos perceberam que já bastavam as inclementes pedradas exteriores, como doíam, não era preciso, entre eles, elevar os ecos da dor, quando aterraram na metrópole, obrigados por uma súbita incerteza que se instalou em cada canto da sua, e de todos os outros, existência, nada traziam, bolsos famintos, olhares caídos, o amanhã apenas um medo, olhavam os outros regressados nas mesmas circunstâncias, e perceberam que, dos anos de África, ao menos, traziam, pelas mãos, o fruto de algo chamado amor, eles nem esse desígnio atingiram, mesmo assim, lá seguiram em frente, como não podia deixar de ser, mais de quarenta anos a partilhar tectos e lençóis e fica tanta coisa silenciada entre um homem e uma mulher, à noite, antes do sono assumir o leme do pensar, ela incessantemente revisitava o passado, e assim percebia a outra que se negara ser, ou que a vida lhe subtraíra, com indisfarçável esforço, resolve levantar-se, ele partiu há três anos, mais concretamente trinta e nove meses, foi de madrugada, acredita que ele a espera em algum lugar, longe das inclementes pedradas exteriores, como doíam, abre a cortina, já é noite, a rua num silêncio iluminado pela luz derramada dos candeeiros, os lençóis na cama persistem no seu frio há mais de três anos, se, ao menos, pelas mãos, o fruto de algo chamado amor, quando regressaram de África, se não houvesse tanto silêncio sob um tecto, entre um homem e uma mulher, talvez a vida uma outra, e possivelmente uma existência fosse resgatada de um estigma de nome orfandade, lá fora nem um carro se ouve, se alguém ali passasse, àquela hora, diria que tudo está em paz na rua das Alfazemas.


 

terça-feira, 10 de dezembro de 2024


... reencontrar a praia onde as águas verdes do rio abraçam o mar, sobretudo da parte dele, sempre encontrou ali algo de hipnotizante, o único local com o dom de permanentemente se metamorfosear, ou pela luz, ou pelas areias emergentes aquando da vazante, o seu espírito aquietava-se, como se exorcizasse de si todas as noites somadas neste caminhar...

in Desolação III

domingo, 8 de dezembro de 2024

Desolação III

 



Assim que abriram a porta do quarto, de novo a sensação de imutabilidade, nada se havia alterado, nem o cheiro, um quê a flores-silvestres e a madeira, para trás ficou o varandim, as águas verdes do rio que, pouco mais à frente, abraçam o mar, o ar povoado pelo cântico estival das cigarras, como se um grito da vida, efémero, trágico, mas que o mundo ouve, os olhos dela em tristeza pelo fim anunciado da doçura daquelas águas, entraram dois naquele quarto, saíram três, nada disseram, tudo se gritava entre eles, de novo, o equívoco de ali terem regressado, quantas vezes ele desejou que o pensar se apiedasse de si, jamais, incessante, feroz, nem por um fragmento de tempo o largava, neste ponto, sabia-a mais quieta, tranquila, como se em cadência com o vagar do dia, assim que a porta do quarto se fechou, ele abriu a janela e ficou a contemplar o possível de montes e águas-esverdeadas, ela a desfazer a mala, queria povoar o quarto da sua identidade, ele procurava-se, ela derramava-se, nesse momento estavam de costas, o silêncio do pensar – entraram dois naquele quarto, saíram três –, as minudências acabam por despertar o verbo, saíram do quarto já a tarde em despedidas, desceram a rua principal até à praia, a ligeireza do ar permitiu-lhes sorrir, lá estava a pastelaria do ontem, um espelho onde ambos gostaram de se rever, ao menos por ali não havia vozes com um timbre solene e, ao mesmo tempo, deveras irritante, tudo como dantes, excepto um ou outro apontamento da denominada modernice, no regresso lá entrariam, havia neles uma latente urgência de reencontrar a praia onde as águas verdes do rio abraçam o mar, sobretudo da parte dele, sempre encontrou ali algo de hipnotizante, o único local com o dom de permanentemente se metamorfosear, ou pela luz, ou pelas areias emergentes aquando da vazante, o seu espírito aquietava-se, como se exorcizasse de si todas as noites somadas neste caminhar, ela chegou aqui depois, pela mão dele, também se sentiu esperada neste lugar onde as águas verdes do rio abraçam o mar, o olhar dele acabava por se perder inevitavelmente pelas areias ora douradas, ora alaranjadas, da margem Sul, ali só um cafezito de madeira como testemunha de haver homem no mundo, daí o seu fascínio, acabava  por ali repousar o olhar e assim  iluminar sonho, ela sempre lhe respeitou os silêncios, talvez intuísse haver nele divisões  onde nem à porta queria passar, não se trata do incomunicável de nós, mas onde sepultamos os nossos sonhos, quantos sonhos suporta um homem? Quantos sonhos suporta uma mulher? Talvez a mulher, pelo seu carácter prático, seja mais lesta a sepultá-los, ou talvez seja o inverso, pois, não sei, ele, como o miúdo que foi, e ainda é, segundo o próprio, olhava para Sul, como desde sempre o fez, a intuição ditava-lhe que talvez na distância o pensar se apiedasse de si, ou por ali, quem sabe, houvesse sonhos à sua espera (quantos sonhos suporta um homem?), ela sabiamente apoia o rosto no seu ombro, num gesto pede-lhe para regressar da lonjura do Sul e, ao mesmo tempo, diz-lhe que alguém o espera, nunca foi insensível a tais singelezas, no rosto desenha-se-lhe um sorriso de gratidão, pensou no que leva um homem, com um tesouro ao lado, a olhar a distância, coisa mais estranha: a beleza das coisas morar num indefinível ponto só tangido pelo pensar; o grito de uma gaivota anunciou o aproximar da noite, ela ainda com o rosto no seu ombro, olhou-a e percebeu-lhe tristeza, ela, neste momento, acompanhava uma mãe, com infinita paciência, a limpar a areia, lá em baixo, na praia, dos pés do filho, teria uns três anos, preferiu manter o silêncio, os argumentos para justificar “entraram dois naquele quarto, saíram três” há muito se lhe esgotaram, bem como a paciência, facto, não foi a sua fonte a secar, mas a dela, antes de entrar naquela sala, as ocas palavras de incentivo (Incentivo para quê? Para o indesejado? Há fases, numa vida, para o amor? Para acolher uma vida nos braços?): “Vai correr tudo bem! Não te preocupes! Tudo voltará a ser como dantes…”: nada foi como dantes, uma fonte ali secou, se o olhar dele, há pouco, pelas areias ora douradas, ora alaranjadas, da margem Sul, o dela simplesmente uns metros abaixo, nos degraus, de madeira, para o areal, onde uma mãe, num zelo só possível à maternidade, procura o último grão de areia dos pés do filho, este segura um avião de plástico nas mãos, em si talvez o desejo da distância, ela reflectiu no que leva um garoto, com um tesouro ao lado, a olhar a distância, ele tentou juntar palavras que os levassem a regressar, não as encontrou, ainda menos que fizessem sentido, nada tinha substância perante a cena a que ela desoladamente assistia, por fim, ela levantou o rosto do ombro dele, com o olhar soletrou-lhe “Entrámos dois naquele quarto, saímos três.”

Não te esqueças de trazer um sonho contigo

 


Assim que ali entrei, depois de folhear três ou quatro revistas, que, de certa forma, reclamavam um merecido descanso, de tão manuseadas serem, além do evidente atestado anacrónico, bastava atentar nas temáticas, não era necessário o preciosismo de verificar devidamente o cabeçalho, espalhadas numa mesa, bem à nossa frente, depois de também percorrer, por mais que um par de vezes, os outros para ali sentados, suficientes para não haver cadeiras vagas, mais elas, é verdade, sinal dos tempos, o feminino aprendeu a determinação, também me olharam, os outros para ali sentados, mais que uma vez, percebi isso, o mais velho devia andar próximo dos quarenta, talvez já tivesse dobrado esse cabo, vinha dentro de um fato habituado a estes cenários, estava sentado muito direito, ao colo uma mala, de couro, coçada em várias partes, também velha viajante destas paisagens, percebia-se-lhe a nervoseira pelo permanente oscilar de joelhos, embora se revestisse de uma expressão imperturbável, como se soubesse ao que vinha, pois, a aparência, a geada da madrugada que se dilui ao irromper da luz primeira de um recomeço, no anelar esquerdo o flagrante vazio, num gritado branco, de um anel retirado, talvez na velocidade da raiva, talvez na lentidão dolorosa do arrependimento, talvez na lucidez fria de quem olha o fim chegado, quem sabe se daquele gritado branco não ficaram despojos, que oscilam, aos fins-de-semana, entre lares, desde que olham o mundo, abaixo da altura de um banco, compreendem na carne do sentir o ser-se indesejado, seres apátridas submergidos na veloz e tumultuosa corrente do hoje, sem direito a réplica, ainda olham o mundo, abaixo da altura de um banco, e já sabem que, entre um homem e uma mulher, para sempre é uma expressão votada a um tempo algures adormecido nos idos da História, foi isso, abaixo da altura de um banco, o que o mundo lhes ensinou, mesmo em frente, uma mulher mais jovem que eu, não devia ter deixado os bancos da faculdade há muito, não sei porquê, mas foi o que me pareceu, havia nela um traço de arrogância de quem se distanciou em demasia da realidade, mas que se vai gradualmente esbatendo à medida que compreendemos a distância entre uma ideia, traduzida por caracteres, gravados na impessoalidade branca de uma página, e a agonia de uma viagem, em hora de ponta, num qualquer transporte público, devia morar em casa dos pais, é possível, denotava-se-lhe ainda aquela segurança de quem desconhece o flagelo da calculadora para se manter à tona até ao final de cada mês, usava as roupas do hoje recicladas, como sempre acontece, ao ontem, não se conseguia perceber se bonita ou feia, tal a dose de efeitos especiais providenciados pela maquilhagem, ao contrário do quase quarentão, permanecia impassível no lugar, de certa forma, parecia mais curiosa do que outra coisa, como se uma exploradora num território inóspito, de facto, desconhecia o flagelo da calculadora para se manter à tona até ao final de cada mês, a dada altura, começou o entra e sai de um gabinete, cada um demorar-se-ia cerca de uma dezena de minutos, percebi que, para o efeito, usaram a ordem de chegada, pareceu-me justo,  por fim, ouvi o meu nome, numa voz sumida, do interior do gabinete, levantei-me e avancei, entrei ao mesmo tempo que fechava a porta atrás de mim, deparei-me com um sujeito um pouco mais novo que eu, nem se dignou a levantar para me cumprimentar, estava dentro de um fato impecavelmente engomado, a gravata condizente, para já, no conjunto, só os modos a destoar, e o cabelo, que insistia em reflectir a luz do tecto por um desencontro de há muito com o champô, os gestos transpareciam a indolência  de quem cumpre um papel a contragosto, e a expressão não desmentia o enfado, pelo contrário, só o acentuava, era outro que desconhecia o flagelo da calculadora para se manter à tona até ao final de cada mês, estendeu-me a mão sem me olhar o rosto, optei pela educação, encontrei uma mão pequena e oleosa, um cumprimento débil, talvez um eco do seu carácter, ouvi, uma vez, que o carácter de um homem se vê pelo vigor do aperto de mão, não sei se é conversa resultante da soma de testosterona e álcool, mas reconheço-lhe alguma credibilidade, e aquele afigurou-se-me um exemplo flagrante, “Ora vem-se candidatar ao…”, optei por encurtar o diálogo e ir ao cerne da coisa, “Sim, e aqui tem o meu currículo”, enquanto lhe estendia uma pasta, com umas quantas folhas impressas, por ali andavam muitos sonhos seguidos de outras tantas frias manhãs, vencia um monte, naquele cume pensei repousar, mas, ali  chegado, só encontrei a sombra de um outro ainda mais alto, logo iniciava nova escalada, com a esperança de alcançar nesse outro cume o merecido repouso sob a luz revigorizante de um sol apenas meu, o sujeito virou as folhas, não sem antes levar o indicador à boca, nem conseguia disfarçar o desinteresse, o facto de nem estar a ler, finalmente, devolveu-me a pasta,Pois, de facto, tem um currículo muito interessante… Como deve calcular, para já, não podemos garantir nada. A ver vamos… É uma questão, se for seleccionado, de aguardar o nosso contacto. Tenha um bom dia!” E lá me estendeu, pela segunda vez, aquela sua mão untuosa, seguiu-se o cumprimento débil, talvez um eco do seu carácter, levantei-me, dirigi-me para a porta, antes de sair, observei o sujeito, nem que fosse uma vez, teria de o ver de cima, claro que nem se apercebeu destas minhas conjecturas, perdido que estava no seu próprio enfado de despachar papéis, sem se aperceber que despachava vidas, que nessas folhas que teatralizava ver, havia muitos sonhos seguidos de outras tantas frias manhãs, muitos montes vencidos, e quando se julgava poder repousar, ainda a arfar pelo cume conquistado, só a sombra de um outro ainda mais alto, logo se iniciava nova escalada, com a esperança de alcançar nesse outro cume o merecido repouso sob a luz revigorizante de um sol apenas seu, mas era o suíno que se sentava atrás de uma secretária, era o suíno que decidia quem teria a possibilidade de lutar, na manhã seguinte, pelo pão de cada dia, nestes momentos, sinto-me um viajante que caminha por cenários longínquos, já não reconheço o meu mundo, um suíno atrás de uma secretária, que leva o indicador à boca para virar folhas, onde estão impressos muitos sonhos seguidos de outras tantas frias manhãs, saio para o que resta da tarde, no ponto onde estava no passeio, percebo a sombra derramada pelo edifício em frente, terei de iniciar uma nova escalada…

domingo, 1 de dezembro de 2024

Desolação II


 

Nos arredores da povoação caiada de branco debruçada sobre o mar, o possível verde de Sul cedia ingloriamente ao cinzentismo dos trolhas, pois, não há quase lugar, no hoje, onde essas patas imundas não cheguem, entre eles, no interior do veículo, apenas silêncio, tentavam reconhecer um vislumbre do lugar das primeiras férias juntos, como estava difícil, o possível verde de Sul cedia ingloriamente ao cinzentismo dos trolhas, a dificuldade maior residia, sem dúvida,  precisamente no interior do veículo, entre eles, aí, sim, nem vislumbres do que eram aquando das primeiras férias juntos, não por acaso ela procurava suspender o tempo, para reencontrar algo que talvez por ali estivesse entre lençóis, areia e mar, ele talvez nem se recorde de, numa manhã de Domingo, lhe tocar à porta coberto com um frondoso ramo-de-flores, à entrada da povoação caiada de branco debruçada sobre o mar, do lado direito, havia uma tascazita, sombria, com similitudes a filme do faroeste, ele prontamente olhou para lá, nada, portas fechadas, o casebre anunciava, num anglicismo, ser hospedaria para quem viesse do exterior, um reflexo do hoje neste território que, há cinquenta anos, faleceu como nação independente: uma hospedaria para quem chega do exterior! A rua principal, que atravessa a povoação caiada de branco, com, pelo menos, o triplo dos carros, os passeios sem vagas para mais transeuntes, tão longe das primeiras férias juntos, como se todos, em Agosto, para ali se precipitassem, ao silêncio, entre eles, no interior da viatura, somava-se um desolado espanto, como se uma sabida vã esperança de se terem enganado no destino, andavam uns metros e logo tinham de se imobilizar, ora pela imperativa passadeira, ora por um carro, na sofrível e mal executada marcha-atrás a sair de um lugar, nova passadeira, outro a sair, de marcha-atrás, num constante pára e arranca cumpriram, durante mais de quinze minutos, os cerca de trezentos metros até ao alojamento das primeiras férias juntos, foi ele a reservar, tal como no passado, um conhecimento de família, aqueles lugares, não obstante a sua centralidade e opulência, exigem um contacto prévio, até um vasto estacionamento interior possui, assim que saíram do carro, não evitaram sorrir, a leveza do ar mantinha-se como da primeira vez, afinal, algo subsistia, dirigiram-se para a entrada, a austeridade das instalações em flagrante contraste com a luminosidade e leveza do exterior, quase se entreolharam para “Afinal, era isto? Na altura, pareceu-nos tanto, e era só isto…”; mas foram surpreendidos por uma figura do passado, uma mulher tão ou mais austera que as instalações, no fundo, parecia uma extensão animada daquelas paredes e ambiente, a voz com um timbre solene e, ao mesmo tempo, deveras irritante, intuíram que ela os reconhecera, apesar de jamais o verbalizar, procedeu à entrega da chave do quarto e a relembrar as regras e horas das refeições, ali, de facto, o tempo suspendera-se, ele chegou a se questionar “Alguma vez entrei ou daqui saí?”; tudo imutável: regras, mobiliário, quadros, as personagens, o timbre, até as flores dos canteiros, no exterior, talvez fossem as mesmas, no entanto, eles destoavam, porque se sabiam outros, de imediato, naquele entreolhar incumprido, compreenderam o equívoco de ali terem regressado, mas era tarde, jamais ousariam confrontar a voz com um timbre solene e, ao mesmo tempo, deveras irritante, e ele já com a chave-do-quarto na mão, quase ousou virar-se para a figura do passado, uma mulher tão ou mais austera que as instalações, no fundo, parecia uma extensão animada daquelas paredes e ambiente, “Não nos víamos há tanto, não é verdade?! A senhora está na mesma…”, no entanto, afigurou-se-lhe ridículo, estéril, descontextualizado, olhava à sua volta e não encontrava quaisquer pontes de diálogo, até as múltiplas figuras religiosas expostas pareciam aquém da compreensão, apenas espelhavam silêncio e sofrimento, o quarto ficava num anexo sobre o rio, tudo permanecia imutável, como se aguardasse pacientemente pelo seu regresso, o olhar dele procurou a racha num dos degraus, ali estava, imperturbável, orgulhosa, como se proclamasse a sua vitória face ao tempo, antes de entrar, ficaram, por uns instantes, do varandim a olhar as águas verdes do rio que, pouco mais à frente, abraçam o mar, o ar povoado pelo cântico estival das cigarras, como se um grito da vida, efémero, trágico, mas o mundo ouve, os olhos dela em tristeza pelo fim anunciado da doçura daquelas águas, entraram dois naquele quarto, saíram três, ela numa total solidão, nada lhe disse, ele tão aquém da compreensão da tristeza pelo fim anunciado da doçura daquelas águas…