Aqui
chegado, creio que só os simples são felizes.
in O lento esvoaçar das cortinas pela manhã
Lá íamos nós, num Sábado à tarde, por
aquela estrada que eu já nem olhava, talvez por um cansaço demasiado de tanto a
percorrer, ou por uma familiaridade indesejada, desde há oito meses que, todos
os fins-de-semana, impreterivelmente, percorremos aquela dúzia de quilómetros,
para lá, depois de regresso, oito meses disto, nem ousei contestar quando ele
insistiu para que a mãe viesse para ao pé de nós, não incentivei, confesso, nem
tinha de o fazer, afinal, a mãe é dele, mas também não lhe coloquei quaisquer
óbices, remeti-me a um cómodo e impassível silêncio, tratou da papelada toda
sem me pedir ajuda, algo raro nele, que nunca saía de casa sem gritar, nem que
fosse por uma vez, o meu nome por algo que sempre se lhe escapava, enfim, tenho
de reconhecer que é a mãe dele, apenas e só, nunca a tratei por sogra, em
verdade, ela nunca soube ir além de ser mãe dele, há coisas fascinantes, parece
que nascemos com uma forma e é tão difícil daí sair, a nossa relação sempre se
pautou por princípios de cordialidade, porém, havia entrelinhas caladas que
eram tão perceptíveis, ainda me lembro, quando a íamos visitar, nos primeiros
passos do nosso casamento, antes de lhe bater à porta, já a mão dele partia da
minha numa fuga envergonhada e por mim até hoje incompreendida, as questões,
que, no fundo, são o alimento de qualquer conversa, saíam dela para o centro da
sua atenção, e percebia o quanto ele exultava com isso, apesar da contenção
exterior, por vezes, dava por mim a observá-lo com uma crescente apreensão, e
questionava se ele, de facto, alguma vez deixara os braços maternos, nesses
momentos, levantava-me e vinha, cá para fora, socorrer-me de um cigarro
nervoso, sempre achei curioso como dias há tanto idos, de súbito, irrompem no
nosso caminho, como se nunca dali tivessem partido, hoje, ela perdeu esses
dias, e muitos outros, porém, continuo a questionar se ele, de facto, alguma
vez partira dos braços maternos, tal a abnegação silenciosa com que segue os
passos do lar, infelizmente, nesta tarde, sob a forma de uma ruína
personificada numa velha abandonada pela memória, é uma casa térrea, com uma
artificialidade no ar que, há mínima contradição, ameaça desmoronar, a velha
está entre velhos, tão longe das certezas e convicções doutrora, assim que me
abeiro da entrada do salão, pejado de velhos que se afiguram a rochas
descobertas por uma inclemente vazante, confesso a minha dificuldade em
encontrá-la, no entanto, ele, pelo contrário, avança sem contemplações, ao
perceber-lhe os passos destemidos, compreendo que se trata mais de um regresso,
é tão estranho, tantas rochas similares naquela vazante e ele aporta sem hesitações
na de sempre, sem dúvida, é um regresso, está sentada num canto da sala, a
cabeça inclinada para a frente, pela boca entreaberta esvai-se-lhe o resto de
dignidade, inclina-se, de imediato, para ela, num misto de respeito e de
devoção, pousa o saco com doces e demais iguarias que relembram um mundo
deixado, como se nela ainda uma memória, a voz dele sôfrega Então, minha mãe… Como está? Pela cabeça
da velha nem um vislumbre de gesto, permanece inclinada para a frente, a boca
entreaberta, a esvair-se-lhe o resto de dignidade, numa lentidão condoída, já
não o ouve, ele sabe-o, contudo, uma qualquer forma de fé ignora-o, prossegue
com o monólogo visto da distância, dali de perto, se lhe perguntassem, diria
que sim, que a velha lhe responde, por fim, ladeio-o, é curioso, ele nem se
apercebe da minha chegada, ou talvez seja uma impressão minha, é possível,
talvez seja isso, permanece absorto naquela mecânica de gestos e palavras
consagrados à velha, chega a ajoelhar-se para lhe endireitar o rosto, permaneço
nas faldas deste meu lado de cá das coisas, não sei porquê, mas algo me dita
para por aqui ficar, a velha está entre velhos, tão longe das certezas e
convicções doutrora, como sempre acontece, enterneço-me com aqueles joelhos no
chão, o monólogo visto da distância, dali de perto, se lhe perguntassem, diria
que sim, que a velha lhe responde, a deferência dos gestos, a almofadinha de
que nunca se esquecia para lhe endireitar a cabeça na cadeira, assim se
estancava a fuga da dignidade, à minha volta, tantas rochas descobertas por uma
inclemente vazante, num abandono ímpar, suspiram por uma maré que se aproxima e
que, por fim, as abrace, até que nada delas reste, nem a memória de um dia
terem sido o horizonte de alguém.
Para quem quiser ler,
Vim
passar um período a casa do meu filho mais novo, chegados a esta fase da vida é
assim, deambulamos pelas casas dos filhos, ora num, ora noutro, embora eu
prefira estar na casa da minha filha, mais velha dos três, talvez por estar
mais próxima da minha, onde começa o Norte deste outrora país, estava a
terminar o jantar, e, de repente, o meu neto mais novo sai
da mesa, a minha incredulidade perante a cena emudeceu-me, as palavras
demoraram a nascer, virei-me para o meu filho, jamais para a minha nora, lá irei a seu tempo, e “Meu
filho, o meu neto sai da mesa sem pedir com licença?”
Ficou tolhido a olhar o prato, só me trouxe ao hoje a imagem da criança que
ainda vislumbro, volta e meia, na memória, encolhido, sem encontrar uma
justificação para o sucedido, parecia ter sido ele o autor da ofensa, “Deixe
lá, minha mãe, deixe lá… São crianças…”, fiquei incrédula perante a
atamancada justificação, não me passou despercebido o
resvalar da sua atenção para a minha nora, lá irei a seu tempo, estava de
pé, atrás de nós, com a louça da janta, numa sonoridade de movimentos para nos
culpabilizar de ainda permanecermos sentados, lá irei a seu tempo, como se não
fosse eu, que já somo oitenta e quatro anos de desilusões, a fazer o jantar e a
pôr a mesa, enfim, lá irei a seu tempo, como dizia, não me passou despercebido
o resvalar da sua atenção para a minha nora, receava não ter a sua anuência em
qualquer possível resposta, insisti “Meu filho, não foi assim que te
eduquei. Como é possível que um miudito saia da mesa sem pedir licença?”, o
olhar dele não descolava do prato, não tinha justificação, nisto a voz dela
trovoou “Aqui em casa, as regras são outras! Se o miúdo saiu da mesa, sem
nada pedir, é porque sabe que o pode fazer. Acho que há coisas bem mais graves
no mundo, não concorda?”, quando não se tem argumentos, tende-se a
universalizar as questões, numa efémera tentativa de as esvaziar, desta feita,
não me contive “O respeito pelos mais velhos semeia-se desde muito cedo!
Uma criança sem referências é um adulto perdido!”, meu filho cada vez mais
de encontro à mesa, parecia assistir à materialização de um profundíssimo
receio, a verdade é que nunca suportei aquela mulher: fútil,
vaidosa, superficial, embirrenta, mimada, em termos de ideias pouco além ia da
sola-do-sapato; este casamento, confesso, constituiu um enormíssimo
desgosto, como se vê, até os filhos usava para me atentar, da minha outra nora,
do meu filho-do-meio, também não era apreciadora, mas esta conseguia ser bem
pior, por uma simples razão: o meu filho era um capacho nas suas mãos, enquanto
o seu irmão lá se conseguia, volta e meia, impôr: uma substancial diferença! Se
narrasse alguns dos deploráveis episódios a que assisti ou me chegaram ao
conhecimento, em vez de uma singela carta, escreveria um romance! Não augurava
grande futuro para este meu neto, nem para o seu silencioso irmão, é triste uma
mãe assistir ao capitular dos valores, transmitidos a um filho, por uma mulher,
só a idade tem o dom de nos ensinar a arte de observar, o primeiro passo é o
silêncio, foi assim que, com ligeireza, inferi o facto de os meus dois outros
filhos não suportarem aquela mulher fútil, vaidosa, superficial, embirrenta,
mimada, em termos de ideias pouco além ia da sola-do-sapato, só o irmão, mesmo
assim escassas vezes, os fazia aproximar, havia sempre uma picardia, um
mal-entendido, uma dissimulada e irónica provocação, quantas vezes, enquanto
ali estava, não orei para que o tempo acelerasse, eu pensei que a face
comprometida dos filhos, sob o nosso olhar, ficasse na infância por uma travessura
descoberta, e ali estava, no seu rosto, a mesma expressão comprometida, só que já
era pai de dois filhos, dobrara os cinquenta, embora, para uma mãe, um filho,
em verdade, nunca abandona o berço, gosto de diariamente visitar a casa que nos
relembra os passos Daquele que veio pelos perdidos e
não pelos honrados,
ao Domingo, enquanto ali estou, na casa do meu filho mais novo, tenho de
os acompanhar, e eu que tanto gosto de estar sozinha, entre aquelas
paredes, perdida nas minhas orações, apesar das minhas frágeis e tão cansadas
pernas, sei que chegam para estas pequenas caminhadas, enfim, com o avançar da
idade há vontades que nos vão sendo vedadas, é uma aprendizagem da vida, quando
somarem oitenta e quatro anos de desilusões digam depois se estava errada, como
dizia, ao Domingo, enquanto ali estou, na casa do meu filho mais novo, tenho de
os acompanhar, ela faz parte do coro, bem à frente do altar, pasme-se, muito
direita, missal na mão, demasiado pintalgada, a juba cimentada a toneladas de
laca, e a soltar aquele vozeirão, questionava qual o critério de selecção para
tais sofríveis dissonâncias, o meu filho, mais atrás, na extremidade de uma
fila, sereno, concentrado nas suas orações, como lhe ensinei, ainda não partira
dele por completo, a seu lado, pasme-se uma vez mais, o meu neto mais novo,
pois, o tal que saiu da mesa sem pedir com licença, observei o miudito, olhava
fixamente, numa humildade respeitosa, a imagem, à direita do altar, Daquele que
veio pelos perdidos e não pelos honrados, pela segunda vez, desde que ali
entrara, sorrio, vislumbro esperança de que, no amanhã, haja menos um adulto
perdido.
Pedro
de Sá
(21/09/24)
Deixei de ir à janela, porquê? Só a parede do prédio em frente, nada mais vejo, se estou arrependida? Como não? Atenção: estou arrependida de para aqui ter vindo, não dele, claro que tem os seus defeitos, só nos cemitérios deixamos de os ter, como bem devias saber, bom, mas falávamos dele, continua uma criança, e isso enternece-me, sai para a rua praticamente mascarado: boné – às vezes, em casa, já discuti para o retirar, é já uma extensão de si –, a camisola.de-alças, de onde sobressaem aqueles bracinhos pálidos e descarnados, parecem uns ramos invernosos, ao pescoço, claro, um colar, como não podia deixar de ser a um habitante deste lugar, não te indignes, não vale a pena, é um facto: há toda uma indumentária a cumprir para os habitantes deste lugar! E o colar faz parte sim, quanto mais volumoso e brilhante, melhor, nunca pensaste viver para ouvir isto? Pois, eu também não, muito menos ter-me juntado a um sujeito assim, claro que tem os seus defeitos, só nos cemitérios deixamos de os ter, como bem devias saber, mas falávamos dele, continua uma criança, e isso enternece-me, uns calções de basquetebolista, são aqueles mais largos e compridos, ainda bem, assim só se vê um bocadito daqueles caniços, também muito esbranquiçados, por fim, uns ténis de gosto muito duvidoso, mais para a bota, confere-lhe um ar de rato Mickey, não me perguntes o porquê, e assim está pronto para um novo dia, se já assentou num trabalho? Achas? Felizmente há trabalhos onde a etiqueta jamais permitiria que sujeitos assim vestidos se aproximassem, por que continuo com ele? Não há uma resposta, são múltiplas razões, não, por favor, não me venhas falar do… Já sei que está formado, com uma carreira em ascensão, neste momento podia ser sua mulher, a partilhar a liderança na clínica, que, num certo momento, virei costas a tudo, ao curso, a uma carreira promissora, às investidas amorosas do meu colega, por me ter encantado por um sujeito de boné, camisola-de-alças, colar, calções de basquetebolista e botas-.ténis, que lhe conferem um ar de rato Mickey, imagino as alegrias de que privei os meus pais, em todos estes anos foste a única a bater-me à porta, não os censuro pela ausência, investiram tanto no meu curso, só o microscópio… Eu sei que se hipotecaram, minha mãe tão feliz quando lhe apresentei o meu colega de faculdade, não, não vale a pena trazer o seu nome ao presente, diligente, atencioso, educadíssimo, dos melhores alunos da universidade, enchia-me de atenções, provinha de uma família com posses, o marido ideal, segundo os meus pais, gostava da sua companhia, diligente, atencioso, educadíssimo, acreditas que nunca me fez rir? Como me poderia incendiar o coração? Também nunca aceitaste que virasse costas ao curso, não é? Não tanto ao colega de faculdade, diligente, atencioso, educadíssimo, pois, como te hei-de explicar…? Não vivia, cumpria um guião escrito para outra personagem, será que assim me faço perceber? Tudo estava delineado, à espera de alguém que não eu… Certa noite, quando me ia deitar, desejei tanto que o amanhã não viesse… Há algo pior que isto: não desejar o amanhã? Isto aterrorizou-me, e bastante, pousei a cabeça na almofada e senti-me literalmente a afundar no negrume da minha infelicidade, nada em mim era espontâneo, pois, cumpria um guião escrito para outra personagem, as conversas dele aborrecidíssimas, pouco variavam das que ouvia por casa – Verões no Sul, Invernos na neve, tudo esquemático –, até que, como bem sabes, um pneu furado, ele à minha frente “Estou a ver que estás bem enrascada,” já buzinas se multiplicavam atrás, não se conteve para as buzinas “Oh, vamos fazer pouco barulhinho, ouviram, pouco barulhinho,” certo foi o cessar do barulho, “Primeiro temos de encostar o carro aqui ao passeio e deixar estes palhaços passar,” dos gestos às expressões senti-me transportada para uma outra realidade, enérgico, espontâneo, brincalhão, tinha qualquer coisa de criança a correr atrás de uma bola, era a sensação que me dava, e eu já sorria, o resto conheces, chamou o reboque, mandou, com o meu consentimento, o carro para a oficina de um amigo, onde fazia umas horas, levou-me a casa no seu, denotava-se-lhe um indesmentível orgulho naquela viatura toda transformada, engraçado ser da mesma marca que a do pai, embora tão distinta, rebaixada, parecia colada ao chão, tive que me esforçar tanto para me erguer, acreditas? E aquela coisa atrás conferia-lhe um ar de nave-espacial, cheia de luzes no interior, parecia que o Natal dali nunca partia, até os cintos-de-segurança num vermelho demasiado, o que ri, pois, tão para além do guião que me haviam estabelecido, no dia seguinte estava à minha espera, quando fui à oficina levantar o carro, com um sorriso infantil “Antes de ires, não queres ir ali tomar nada?” apontou na direcção do que me pareceu um café, “Vamos!”, não me recordo de ter processado a resposta, quando me regressei, estava sentada, lado-a-lado, com ele ao balcão de um café rústico, repara: sentada, lado-a-lado, com ele, ao balcão: tão distante de mesas com toalhas, serviço cerimonioso, talheres-reluzentes, tudo numa lentidão exasperante; olhei a porta aberta para uma outra realidade, onde me vi a rir desassombradamente, sem vestígios de esquemas-rígidos, com o rato Mickey à minha frente, como pude resistir? Até a fumar me pôs, queres melhor? É um apartamentozito acanhado? E, para mais, rés-do-chão! Não tem vista e o sol desconhece o caminho para as suas janelas? Pois, são factos… Está uma boca a caminho para alimentar? Mais um facto. Trabalha em vários lados, embora nenhum seja certo? Outro facto. Se é isto que quero para o futuro? Sei o que não quero: pousar a cabeça na almofada e sentir-me literalmente a afundar no negrume da minha infelicidade, foi isso que senti na casa da tua filha, pois, cumpria um guião escrito para outra personagem, há tanta coisa por resolver que me esqueci do amanhã, tens de nos visitar, sabes, até podemos dar uma volta no carro dele, cheio de luzes no interior, parece que o Natal dali nunca parte.
(13/09/24)
Como
anda ele? Uma boa pergunta! Olhe, não sei o que lhe responder, em verdade tudo
depende dela… Ao ponto que chegámos, o sorriso do filho nas mãos de uma
qualquer… Já lhe tentei explicar, com todos os argumentos possíveis, o óbvio: o
facto de ele lhe ter concedido todo o poder da relação! Como é possível? Nunca
o vi assim, a suavidade da voz ao melodiar o nome dela, vezes a mais, para o
meu gosto, por dia, parece-me, não sei porquê, que nada mais existe para ele
nesta vida, tudo, mas tudo de facto, gravita em torno daquela criatura, nada
mais vê, só a… Eu nem consigo pronunciar o nome dela! Às vezes acho que lhe lançou
um feitiço… Não, não se ria, já vi muita coisa nesta vida! Não, não me parece
que isto passe tão cedo! Não, não é uma fase, muito longe disso, repito: eu
nunca o vi assim, desta vez sinto que é diferente, não sei como descrever…
Intuição de mãe, como lhe queira chamar, a verdade é que ele está diferente,
longe dela parece que a vida o abandonou, um boneco velho
e avariado num sótão obscuro, o olhar turva-se-lhe, assim que ela o chama,
tudo se altera, a vida regressa-lhe, as frases sucedem-se-lhe numa ânsia
irreprimível, os gestos velozes e ágeis, quando há pouco num torpor de boneco
velho e avariado num sótão obscuro, o que diz o pai? O que acha? Sinceramente,
o que lhe parece? Acha muito bem, o rapaz está apaixonado, é óptimo, para eu
não me meter, são as dores do primeiro amor, que eu estou a ser picuinhas, o
habitual de quem vê o acontecer da lonjura, nem me dou ao trabalho de lhe dar
réplica, um encolher-de-ombros poupa tanta discussão, nem imagina… Com os anos que levo nesta caminhada por aqui, há muito
aprendi que toda a relação assenta num jogo de poder, ele praticamente
colocou-se aos pés dela, em nada se resguardou, em nada, quando recebemos
alguém, pela primeira vez, em casa, podemos mostrar-lhe ou não todas as
divisões, agora não me parece nada sensato abrir todos os armários: foi isto,
para lhe dar uma imagem, que ele fez: escancarou todos os armários, até deitou
pelo chão o conteúdo da mais insignificante gaveta; ela, no entanto, manteve-se
opaca, limitou-se a inflamar-lhe o sentir da varanda do seu secretismo, da sua
lonjura nocturna, ela tudo sabe dele, o inverso jamais; compreende, agora, a
minha apreensão? Assim que a vi, percebi logo, é uma “viajante,” o que quero dizer com isto?
Nenhum coração a fará apear-se, continuará a sua incessante marcha, rumo a um
destino que a própria ignora, o problema está nos irreversíveis e dolorosos
estragos perpetrados pelo caminho… Como eu sei que é
intencional? Não ouviu o que eu disse há pouco? Com os anos que levo nesta
caminhada por aqui, há muito aprendi que toda a relação assenta num jogo de
poder, em algum momento, ela colocou-se aos pés de alguém que tanto a magoou,
para se reerguer, ela petrificou o órgão que antes lhe batia no peito,
contenta-se, desde então, a ver os outros caídos por terra, como se, assim,
limpasse os erros do seu passado, acha rebuscada esta minha teoria? Não é
teoria, apenas uma leitura dos factos, nenhuma relação pode caminhar com tão
flagrante desequilíbrio: de um lado, até gavetas pelo chão, do outro, só a
porta-da-rua se entreabriu, diga-me: onde está o tão necessário equilíbrio? Claro
que ele vai cair, estou mais que consciente desse facto, a minha questão está
se conseguirá reerguer-se… Precisava de o ver ao lado dela, é deprimente, um
boneco-articulado sem alma, doou-se tanto nesta relação, ela tão sabida, a
todos os níveis, se me faço perceber, demasiado sabida, diria mesmo, a
controlar cada passo, de avanço ou recuo, o pateta a obedecer cegamente a cada
ordem, chamá-lo à razão??? Está a brincar comigo, certo? Quando o coração está
ao leme de nós, onde fica a razão? Pois, numa qualquer cela empoeirada do casco!
Nunca fui dada a perder tempo, quando o vento do acontecer sopra contra nós, as
palavras tornam-se supérfluas, faço-me entender, jamais encontram receptor… Ela
vai deixá-lo caído! Estou a ser muito fatalista? Assim que a vi, percebi logo,
é uma “viajante,” o que quero dizer com isto? Nenhum coração a
fará apear-se, continuará a sua incessante marcha, rumo a um destino que a
própria ignora, o problema está nos irreversíveis e dolorosos estragos
perpetrados pelo caminho… Não, não é por aí, até essas, as que procuram saber o
peso da carteira, são mais transparentes, esta é de outra índole, anseia o
poder, ver cada um caído a seus pés, talvez um dia encontre alguém com a
capacidade de se reerguer e a devolva à sua real pequenez, este, coitado, não
será, acredito que não tenha uma essência má, ninguém tem culpa das feridas do
seu ontem, a questão é esta, se me quis conhecer? Até se sentou a meu lado e
fez questão de encetar diálogo, mais um pouco e até eu me enredava na sua teia,
agora que a memória iluminou este episódio, não me recordo de uma frase sua e
eu tanto me falei… Acho que é o seu olhar, possui um estranho magnetismo, é
compreensível que tantos por ali naufraguem…
De repente, não sabe de onde, aquela
frase diante de si, como se nunca tivesse partido, Realmente, és tão diferente do teu irmão! Não tens nada a ver, nem
pareces saído de mim, ouve-a, primeiro, depois, olha-a, com uma nitidez
solar, Realmente, és tão diferente do teu
irmão! Não tens nada a ver, nem pareces saído de mim, sabia que ela tinha
prazer nestas palavras, percebia-se-lhe o gosto, apesar da sua precoce idade,
no entanto, dizia-lhe estas coisas sempre a sós, assegurava-se de que ninguém
os ouvisse, nessa altura, atribuiu as palavras ao facto de se concentrar em
demasia nos jogos de bola, tanto na escola como, na rua, com os vizinhos,
enquanto o irmão debruçado sobre livros, concentrado, ponderado nas suas
análises sempre que o solicitavam, prestimoso nas lides domésticas, de facto,
nada a apontar, talvez fosse início de tarde, era um dia de Inverno, um
cinzento constante de manhã à noite, até as sombras se tornavam indistintas no
seu duplicar agora entristecido, olha a janela chovida, observa os veios desenhados
pela água caída das alturas, são lágrimas alongadas por uma dor anterior ao
sentir, pensava ele, da sua secretária, enquanto fingia olhar para o écran, mas
aquela melodia de tarde cinzenta, em que o céu regressa à terra, leva-o para
longe daquelas conta-correntes, que tremeluzem diante de si, afasta um pouco a
cadeira da secretária, cansado de ver insaciáveis subtracções para tão
esquálidos créditos, orçamentos familiares que, durante trinta dias, percorrem
uma tormenta num fascinante equilíbrio de velho malabarista, através dos veios
desenhados pela água caída das alturas, na indistinta tarde do perpassado
cinzento matinal, aquela voz ecoa, como se nunca tivesse partido, Realmente, és tão diferente do teu irmão!
Não tens nada a ver, nem pareces saído de mim, porém, a voz partira, foi,
talvez nesse momento, que iniciou a compreensão de melodias de tardes
cinzentas, em que o céu regressa à terra, lembra-se, em particular, do esforço
em manter o guarda-chuva direito, o rectângulo de terra aberto a seus pés, o
irmão do outro lado, mais uns vultos, indistintos àquela hora de regressos, que
não perfaziam as duas dezenas, sentiu-se um espectador, nada mais, um
espectador impassível, como um convidado que assiste a um indesejado
espectáculo simplesmente por mera cortesia, a terra molhada a pesar o dobro, as
pás a moverem-se numa lentidão esforçada, como se cada gesto um cântico à
memória, olhou o irmão, do outro lado, muito direito, alguém, a seu lado,
segurava-lhe, também em esforço, o guarda-chuva, apesar do incessante regresso
da água das alturas à terra, percebia-se-lhe a concentração, a ponderação das
suas análises sempre que o solicitavam, o carácter prestimoso nas lides
domésticas, de facto, nada a apontar, as pás a ocultar o rectângulo de terra,
assim começa uma memória. Por fim, o regresso de cada um ao seu mundo, àqueles
dissabores quotidianos superados apenas por uma qualquer coisa indistinta, a
que dão muitos nomes, até que somos também o início de uma memória… Tantas
certezas, sempre muito direita, até ao fim, já as mãos fossilizavam, mas as
costas estoicamente aguentavam o peso do existir, fazia questão disso, gostava
de dar conselhos, até elevava a voz para que se soubesse, nas mesas vizinhas,
que o fazia, as amigas coravam, mas ela irradiava aquela segurança, tinha
gáudio nisso, antes de acompanhar as águas das alturas no regresso à terra,
sublinhou a sua vontade de ficar perto de casa, ele e o irmão, espantados,
questionaram o porquê, afinal, o pai repousava na província, comprara-se um talhão
com esse propósito, e afinal… A resposta, como sempre, a não tardar Já o aturei que chegue em vida! Ao menos, que tenha sossego do outro lado, depois
de tanto, ninguém se espantou, só aqueles escassos vultos, indistintos àquela
hora de regressos, que não perfaziam as duas dezenas, ainda o deixam inquieto,
tantas convicções, certezas e mais certezas, concorridíssimas tardes de chás e
cafés pelo bairro, as quintas-feiras de canasta, aqueles ditames sibilados
sempre a sós, assegurava-se de que ninguém os ouvisse, Realmente, és tão diferente do teu irmão! Não tens nada a ver, nem
pareces saído de mim, hoje, a olhar aquela janela chovida, dá-lhe a sua
razão, afinal, diante daquele rectângulo de terra aberto a seus pés, ao iniciar
a compreensão de melodias de tardes cinzentas, em que o céu regressa à terra,
lembra-se, em particular, do esforço para manter o guarda-chuva direito.
Dizem
que, com a idade, as pessoas mudam? Que grande mentira! Ela sempre assim foi,
que mais lhe posso dizer? Não, não sei a quem puxou, detectei-lhe isto cedo,
muito cedo, teria uns quatro anos, a irmã, mais nova dois anos, magoou-se, por
qualquer coisa, ela a um canto, num berreiro, dizia ter-se também magoado, não
me pergunte como, a verdade é que todos, logo ali, ficámos à sua volta, a irmã,
mais nova dois anos, acabou por se remeter ao silêncio, este foi, aos meus
olhos, o início do seu monopólio da dor, certa vez, em adolescente, já tínhamos,
nessa altura, as nossas acentuadas divergências, lembro-me bem de lhe dizer “Coitado
do homem que contigo casar! Então, se tiver a infelicidade de te amar, será um
fantoche nas tuas mãos!” Ela não respondeu, também não lhe admitia, ficou a
ruminar a minha observação, elucidativo, não acha? Pois, o seu silêncio dava-me
razão, e não é que encontrou um homem assim? O início de qualquer relação, como
deve saber, é pautado pela teatralização, não é necessária muita sabedoria para
aqui chegar, escondemo-nos para sermos aceites e do outro lado sucede o mesmo,
a questão é sempre a mesma: “Quem, na realidade, mais se esconde?” Bom,
como dizia, em teatralização ela era ímpar, nunca lhe vi igual, teria sido uma
actriz superlativa, não duvide, no dia-a-dia arrasava qualquer público
desprevenido com as suas cenas, ou porque entalou a mão numa porta, ou as
inevitáveis dores-de-cabeça, quando o pai se atrasava para jantar, só lhe
faltava ir ao cemitério, enfim, drama era a sua verdadeira especialidade, por
ser a via encontrada para o reconhecimento alheio, uns procuram as Artes,
outros o Desporto, há os que optam pela filantropia, os mais cinzentos anseiam
o reconhecimento pela profissão que abraçaram, também há os que querem ser
notados pela ausência, isso é para outras linhas, são escassos, mas talvez
sejam os que mais desejam o palco, assim que o vi, a seu lado, percebi: este
homem está perdido! No início da relação, ainda lhe dava alguma réplica, pouca,
é certo, porém marcava a sua posição, eu ria-me, claro, era uma questão de
tempo, como tudo debaixo do céu, o seu olhar, assim que ela aparecia, indiciava
tudo, criança em noite de luzes e concórdia a avistar o presente mais desejado,
“Estás perdido, rapazinho!”, pensei no silêncio de mim, “Estás perdido,
rapazinho!”, dois ou três meses de namoro e ela já caminhava à sua frente,
não por acaso só conheceu os pais dele seis ou sete meses depois, enquanto já
ele frequentava a nossa casa desde o primeiro dia, sabe, este aspecto é muito
interessante: a sua vida anterior parece ter sido subtraída, enquanto a dela se
manteve intacta; sempre liguei muito aos pormenores, às
nuances do acontecer, observo mais os gestos nos silêncios do que durante a
estéril gritaria, não me pergunte porquê, sempre assim fui, confesso, desde
que o conheci, ter logo simpatizado com o rapaz, talvez a compaixão sentida
contribuísse sobremaneira, era genuíno, não lhe pressenti maldade, coisa tão
rara, e bêbedo de amor por ela, tinha o fantoche nas mãos, o dom inato da
representação, só faltava subir o pano, diz-se que ninguém conhece melhor os
filhos que os pais, apenas estupidez, as divisões de uma casa têm porta para os
actores conseguirem pousar as máscaras, percebeu? De certeza? Ela, por exemplo,
também dominava o pai, fervoroso adepto da sua teatralidade, quantas discussões
não tivemos… Embora o meu verdadeiro temor habitasse mais à frente, já
projectava o devir, se tragicamente Deus lhe permitisse dar à luz, escolhi bem
as palavras, não se preocupe, o dom da maternidade jamais lhe fôra concedido,
uma mãe jamais procura o monopólio da dor, pelo contrário, procura a sombra
para que a luz ilumine quem caminhará sobre o palco do existir, logo esta
mulher desconhecia, na plenitude, o que é segurar nos braços o amanhã de si, no
entanto, por três vezes abriram-na para retirar os fetos, simbólico o facto de
não ter conseguido parir, pois, lá está, sempre liguei muito aos pormenores, às
nuances do acontecer, observo mais os gestos nos silêncios do que durante a
estéril gritaria, não me pergunte porquê, sempre assim fui, um não vingou, quiçá
o mais esclarecido, os outros dois não tiveram esse privilégio, sabe que, para
um rapaz, o amor da mãe é vital? Não é fácil crescer órfão desse sentir, em
pequeninos, se caíssem de bicicleta, por muito magoados estivessem, eram as
lágrimas dela o centro de tudo, o marido não corria para levantar o filho caído,
mas para a aquietar, “Estás perdido, rapazinho!”, “Estás perdido,
rapazinho!”, outras quedas, algumas desmesuradas, surgiriam, na memória de
todos só os ecos dos gritos dela, jamais alguém se abeirou do caído e lhe perguntou:
“Sobrevives a tal dor?” Se, por acaso, um dia, os filhos, basta um
deles, se aperceberem disto, creio que terão feito uma longa e invernosa
travessia, nesse ponto, ela já será uma estranha, não me espanta, ninguém
coloca um ser neste mundo para caminhar entre as sombras, simplesmente por no
seu peito não haver lugar para um amanhã de si.