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sábado, 9 de março de 2024

Da Indignação


 

E que dizes da incessante repetição dos dias? Levantar à pressa, calar o despertador, pequeno-almoço ritmado pelos ponteiros do relógio, segue-se o trânsito ou os transportes-públicos, quantos anos não se esvaem nesse pesadelo materializado, trabalho ou lá o que essas tarefas impostas para garantir a sobrevivência se chamem, almoço ritmado pelos ponteiros do relógio, mais uma tarde de trabalho ou lá o que essas tarefas impostas para garantir a sobrevivência se chamem, de novo, agora para o regresso a casa ou lá como lhe queiram chamar, o trânsito ou os transportes-públicos, quantos anos não se esvaem nesse pesadelo materializado, jantar cadenciado por bocejos e um pânico calado, num canto de nós, por se vislumbrar o negrume do dia seguinte, um decalque deste, mulher ou filhos, se os houver, em tentativas de apelar a atenção, paciência falecida (que fazer?), o sofá como porto-de-abrigo após o jantar, assiste-se a uma qualquer boçalidade, apesar das ameaças de queda devido ao sono, após um dia assim ninguém quer coisas que obriguem a pensar muito (não é verdade?), a boçalidade sempre distrai e, no fundo, todos gostam, ao menos, nesses instantes, a mulher em silêncio, por fim, a cama, não se pode esquecer dos comprimidos que abrem a porta ao sono, de outra forma, só o revirar-se indefinidamente, a mulher a seu lado, entre eles apenas um sumido “Até amanhã!”, quando, há uns anos, não tantos assim, tardes e tardes de êxtase, um arrebatamento até ao infinito da vertigem, os lençóis como testemunha de que ali se cumpriu paixão, hoje apenas um sumido “Até amanhã!”, costas voltadas, a espera pelo sono, e o terror por tudo se reiniciar, os fins-de-semana, dois dias que passam entre um descer e subir de pálpebras, numa deriva, não há ânimo para mais, a energia rareia, entre compras, um café ali, outro acolá, de vez em quando, ao passar por um lugar ou ouvir certa melodia, o passado a irromper pelo pensar, a saudade da felicidade, e o hoje é isto, entre  murmúrios (“Não, não foi uma ilusão, eu vivi aquilo e tão feliz fui… Ao menos tenho, em mim, essa certeza!”), o lar não convém sair do horizonte, pois a fadiga é muita, muito, muito, a custo, lá chegam as férias, a inevitável discussão pela escolha do destino, a calculadora entra ao serviço, lá surge outro pesadelo materializado, o aeroporto, a inexplicável imposição de chegar com três horas de antecedência, quantos anos por ali não se esvaem, espera, mais espera, ainda mais espera, bichas e bichas, malas e malas, pega agora, carrega para ali, vai para acolá, saca da carteira, mais à frente, de novo a carteira, um cartão com o teu nome e foto, como se aquilo fosses tu, inpeccionam-no com olhar cirúrgico e desconfiado, olhos no cartão e em ti, cartão de novo e em ti, “Pode passar”, corredores infinitos, as rodas da mala, se as tiver, a chiar canseira, chegas a um ponto em que tudo tens de beber e comer, ordens de rosto sempre velado assim o impuseram, o problema é não teres fome nem sede, no entanto, o desperdício salta-te à vista, e os escrúpulos pela fome deste lado das coisas, assim bebes sem sede e engoles sem fome, de novo a carteira, um cartão com o teu nome e foto, como se aquilo fosses tu, inpeccionam-no com olhar cirúrgico e desconfiado, olhos no cartão e em ti, cartão de novo e em ti, “Pode passar”, por umas janelas numa demasia oblíqua espreitas o pouco de mundo oferecido, a asfixia daquela artificialidade faz-se sentir, olhas com ânsia cada cilindro com asas e pensas qual te vai levar para o sonho comprado, todavia segue-se mais espera, uma oração para que não haja atrasos, já lhes conheceste o fel, por fim, chegou a hora, antes, porém, tens de ouvir oficializar a coisa por uma voz, nada, só silêncio, o tempo continua, entraste ali precisamente há mais de cinco horas, lá surge alguém a anunciar o óbvio e tão ansiosamente esperado, o lugar onde agora estás, a porta que se vai abrir para o cilindro com asas, bichas, mais bichas, os bilhetes, um cartão com o teu nome e foto, como se aquilo fosses tu, inpeccionam-no com olhar cirúrgico e desconfiado, olhos no cartão e em ti, cartão de novo e em ti, “Pode passar”, o tão ansiado cilindro revela-se um lugar acanhado, turvo, à volta só gente a levantar malas para enfiar nos compartimentos superiores, um infindável barulho das portinholas a abrir e fechar, abrir e fechar, finalmente sentam-se, até os dedos se entrelaçam, trocam olhares que segredam “Cá vamos nós rumo ao paraíso”, entretanto, uma certeza nasce: o desconforto dos assentos; lá se contorcem nos lugares, na procura de uma posição que mitigue dores antigas, quando, um pouco à frente, no corredor, veem a hospedeira-de-bordo numa mímica, cansada e ridícula, a ilustrar uma extenuada mensagem, emitida por uma tão impessoal voz, subitamente o pânico, as costas do assento da frente quase de encontro ao seu rosto, o anafado que lá se sentara resolveu espreguiçar-se, incidentes, pois, incidentes, a aterragem, a espera pelas malas e malas, pegar, levar, entregar, o autocarro para o hotel, a certeza de que dispõem de poucas horas até ao amanhecer, mas não se pode desperdiçar o pequeno-almoço, o fatídico despertador, uma exclamação impronunciada pelo pensar (Até nas férias! Até no tal paraíso!), sob o domínio do sono encaminham-se lentamente para a sala-de-refeições, à sua espera a caos, um vai-e-vem de gente com pratos, sem pratos, todo à volta de largas mesas com diminutas quantidades para um potencial pequeno-almoço, e, claro, bichas e bichas, uma prece para que o tempo lhes permita a sonhada praia, de repente, chegou o dia de regresso (“Mas como? Já?! E gastámos a totalidade dos subsídios! Pois foi… Mas valeu a pena, não achas? Confesso que não sei… Passou tão rápido! Parece que chegámos ontem e hoje estamos a ir embora… Estivemos uma semana, mas pareceu um dia…”), e lá vêm eles, tudo de novo, o aeroporto, as horas infindas perdidas, as malas, tira cartão, arruma cartão na carteira, o desconforto dos assentos, a ridícula mímica da hospedeira-de-bordo a ilustrar uma extenuada mensagem, emitida por uma tão impessoal voz, agora no sentido contrário, rumo ao seu quotidiano, uma questão demasiado subterrânea a levantar-se-lhes, ela logo a silencia, ele talvez não, uma vez que no seu horizonte já vislumbra um pesadelo materializado, trabalho ou lá o que essas tarefas impostas para garantir a sobrevivência se chamem, e enquanto se remexe, no desconforto daquele assento, na procura de uma posição que mitigue dores antigas, as palavras chegam-lhe ao penar, ordenam-se na forma de uma questão: “O que ando aqui a fazer?”

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