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quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

E ainda consegues sorrir…

 



A ideia foi minha. Sim, sem qualquer dúvida. Há tanto que lhe falava daquele lugar, de como seria bom nós dois por ali, então lembrei-me de um piquenique, logo eu que nunca fui dado a esse tipo de coisa, refeição, para mim, sempre de garfo e faca e sentado à mesa, só de pensar no desconforto, para não falar da irritação dos insectos, que sempre encontram uma forma de entrar sem convite, acho que nunca estive em nenhum, ou talvez tenha estado, mas para além do alcance da minha memória, apenas imagens esparsas, e onde não há memória não há estar, uma excursão, um lugar religioso, acordar enquanto o mundo ainda se espreguiça, talvez o almoço sobre uma manta estendida no chão, o tacho do arroz envolto em folhas de jornal, sempre demasiado amarrotadas, nunca percebi a razão de o arroz e das notícias, mas também não questionei o porquê dessa estranhíssima ligação, rissóis, fatias de carne assada, os inevitáveis refrigerantes, garrafas de um impressionante verde-escuro com a alegria líquida dos homens no seu interior, eu igualmente aquém desse fascínio, ainda hoje me quedo nas faldas desse culto, à nossa volta, mais toalhas pelo chão, um edifício imponente, ao fundo de uma alameda, com uma cruz no topo, parecia tactear os céus como se para relembrar que aqui estamos, no ar um aroma a promessas, personalizadas em tremeluzentes, frágeis e ondulantes chamas que derramam a sua peculiar luz naquele espaço do sagrado, é curioso, uma vela ilumina mais as sombras, como se redesenhasse todo espaço em volta, num fascinante jogo em que tudo se suspende, até o próprio tempo, diante de nós, agora, um mundo verde, em lugares como este só nos resta questionar em que momento nos perdemos, vivemos apertados e tão longe das coisas, por vezes, pairamos sobre a vida em vez de a viver, ela, a meu lado, em silêncio, perde-se, fascinada, com a beleza em volta, gosto disso, sinal de sensibilidade, e diz-se tanto nesses momentos, não sei se já aqui estivera antes, também não lhe pergunto, aprendi há muito que trazer o passado ao presente só se for a serviço da verdade, de resto, só nostalgia ou azedume, por fim, chego onde queria, imobilizo o carro, e aponto para a direita, ela vira o rosto enquanto desce o vidro, já era Outono, não sei porquê, sempre pensei em morrer no Outono, há um prenúncio de fim nas coisas mas ainda não terminou, afinal, o Inverno ainda não bateu à porta, um prenúncio de fim nas coisas, gosto disso, parece que o Sentido está por momentos, fascinada, ela sai do carro e abraça o possível, em volta, com o olhar, sigo-a na discrição de quem finge contemplar, em verdade, é ela quem eu contemplo, a luz e sombras da tarde pelos seus cabelos, a boca ligeiramente entreaberta num espanto mudo à paisagem, como se verbalizasse algo para logo o silenciar, pára e vira-se para mim, aproximo-me, percebo-lhe a anuência pela minha escolha, regresso ao carro pelo cesto, de seguida, aponto o monte para onde vamos, falamos disto e daquilo à medida que subimos, achei curioso ela não me questionar como conhecera aquele lugar, eu lentamente a compreender que o silêncio grita tanto, quando ela me sustinha o olhar por vários segundos, percebo-lhe os passos pelos meus pensamentos, somos tão estranhos, se, naquele momento, me perguntassem qual a primeira frase que trocáramos, não saberia o que responder, de facto, eu já ali tinha estado antes, por duas ou três vezes, igualmente de tarde, mas hoje, não sei porquê, as águas do rio, lá em baixo, com um outro brilho, as folhas reflectem mais o céu e cantam de uma outra forma a passagem da brisa, o ar convida a ser, apenas, quando me sento já uma manta estendida no chão, porém, nem vestígios de um tacho de arroz envolto em folhas de jornal, sempre demasiado amarrotadas, nunca percebi a razão de o arroz e das notícias, mas também não questionei o porquê dessa estranhíssima ligação, nem de rissóis, fatias de carne assada, dos inevitáveis refrigerantes, de garrafas de um impressionante verde-escuro com a alegria líquida dos homens no seu interior, nada, nem vislumbre de um edifício imponente, ao fundo de uma alameda, com uma cruz no topo, que parecia tactear os céus como se para relembrar que aqui estamos, ela, ali sentada, concentrava tudo o que sou ou fui, sentei-me, se a minha memória guardar uma refeição será esta,  não sei do que falámos, não sei o que estava sobre a toalha, simplesmente falámo-nos, quando regressámos ao carro, de novo, em mim, aquele pensamento sempre pensei em morrer no Outono, a felicidade e a tragédia caminham pela mesma estrada, as folhas continuavam a cantar a brisa da tarde, as águas sussurravam a vinda da noite, como se em preparativos para espelhar as estrelas, o ar persistia no seu apelo a sermos, ela ali, a meu lado, a relembrar-me que sou, regressámos, a certa altura, perguntou-me Estás feliz? Não lhe respondo, por instantes, de novo aquele pensamento, sempre pensei em morrer no Outono, atravessa-me o espírito, reduzo a marcha, por ali ainda só nós, nunca antes me haviam feito tal pergunta (Estás feliz?), e era tão simples, tão curta, procurei palavras para lhe dizer que, bom, que, como hei-de dizer, que queria ali regressar com ela na Primavera.


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