A ideia foi minha. Sim, sem qualquer
dúvida. Há tanto que lhe falava daquele lugar, de como seria bom nós dois por
ali, então lembrei-me de um piquenique, logo eu que nunca fui dado a esse tipo
de coisa, refeição, para mim, sempre de garfo e faca e sentado à mesa, só de
pensar no desconforto, para não falar da irritação dos insectos, que sempre
encontram uma forma de entrar sem convite, acho que nunca estive em nenhum, ou
talvez tenha estado, mas para além do alcance da minha memória, apenas imagens
esparsas, e onde não há memória não há estar, uma excursão, um lugar religioso,
acordar enquanto o mundo ainda se espreguiça, talvez o almoço sobre uma manta
estendida no chão, o tacho do arroz envolto em folhas de jornal, sempre
demasiado amarrotadas, nunca percebi a razão de o arroz e das notícias, mas
também não questionei o porquê dessa estranhíssima ligação, rissóis, fatias de
carne assada, os inevitáveis refrigerantes, garrafas de um impressionante
verde-escuro com a alegria líquida dos homens no seu interior, eu igualmente
aquém desse fascínio, ainda hoje me quedo nas faldas desse culto, à nossa
volta, mais toalhas pelo chão, um edifício imponente, ao fundo de uma alameda,
com uma cruz no topo, parecia tactear os céus como se para relembrar que aqui
estamos, no ar um aroma a promessas, personalizadas em tremeluzentes, frágeis e
ondulantes chamas que derramam a sua peculiar luz naquele espaço do sagrado, é
curioso, uma vela ilumina mais as sombras, como se redesenhasse todo espaço em
volta, num fascinante jogo em que tudo se suspende, até o próprio tempo, diante
de nós, agora, um mundo verde, em lugares como este só nos resta questionar em
que momento nos perdemos, vivemos apertados e tão longe das coisas, por vezes,
pairamos sobre a vida em vez de a viver, ela, a meu lado, em silêncio,
perde-se, fascinada, com a beleza em volta, gosto disso, sinal de
sensibilidade, e diz-se tanto nesses momentos, não sei se já aqui estivera
antes, também não lhe pergunto, aprendi há muito que trazer o passado ao
presente só se for a serviço da verdade, de resto, só nostalgia ou azedume, por
fim, chego onde queria, imobilizo o carro, e aponto para a direita, ela vira o
rosto enquanto desce o vidro, já era Outono, não sei porquê, sempre pensei em
morrer no Outono, há um prenúncio de fim nas coisas mas ainda não terminou,
afinal, o Inverno ainda não bateu à porta, um prenúncio de fim nas coisas,
gosto disso, parece que o Sentido está por momentos, fascinada, ela sai do
carro e abraça o possível, em volta, com o olhar, sigo-a na discrição de quem
finge contemplar, em verdade, é ela quem eu contemplo, a luz e sombras da tarde
pelos seus cabelos, a boca ligeiramente entreaberta num espanto mudo à
paisagem, como se verbalizasse algo para logo o silenciar, pára e vira-se para
mim, aproximo-me, percebo-lhe a anuência pela minha escolha, regresso ao carro
pelo cesto, de seguida, aponto o monte para onde vamos, falamos disto e daquilo
à medida que subimos, achei curioso ela não me questionar como conhecera aquele
lugar, eu lentamente a compreender que o silêncio grita tanto, quando ela me
sustinha o olhar por vários segundos, percebo-lhe os passos pelos meus
pensamentos, somos tão estranhos, se, naquele momento, me perguntassem qual a
primeira frase que trocáramos, não saberia o que responder, de facto, eu já ali
tinha estado antes, por duas ou três vezes, igualmente de tarde, mas hoje, não
sei porquê, as águas do rio, lá em baixo, com um outro brilho, as folhas
reflectem mais o céu e cantam de uma outra forma a passagem da brisa, o ar convida
a ser, apenas, quando me sento já uma manta estendida no chão, porém, nem
vestígios de um tacho de arroz envolto em folhas de jornal, sempre demasiado
amarrotadas, nunca percebi a razão de o arroz e das notícias, mas também não
questionei o porquê dessa estranhíssima ligação, nem de rissóis, fatias de
carne assada, dos inevitáveis refrigerantes, de garrafas de um impressionante
verde-escuro com a alegria líquida dos homens no seu interior, nada, nem
vislumbre de um edifício imponente, ao fundo de uma alameda, com uma cruz no
topo, que parecia tactear os céus como se para relembrar que aqui estamos, ela,
ali sentada, concentrava tudo o que sou ou fui, sentei-me, se a minha memória
guardar uma refeição será esta, não sei
do que falámos, não sei o que estava sobre a toalha, simplesmente falámo-nos,
quando regressámos ao carro, de novo, em mim, aquele pensamento sempre pensei em morrer no Outono, a
felicidade e a tragédia caminham pela mesma estrada, as folhas continuavam a
cantar a brisa da tarde, as águas sussurravam a vinda da noite, como se em
preparativos para espelhar as estrelas, o ar persistia no seu apelo a sermos,
ela ali, a meu lado, a relembrar-me que sou, regressámos, a certa altura,
perguntou-me Estás feliz? Não lhe
respondo, por instantes, de novo aquele pensamento, sempre pensei em morrer no Outono, atravessa-me o espírito, reduzo
a marcha, por ali ainda só nós, nunca antes me haviam feito tal pergunta (Estás feliz?), e era tão simples, tão
curta, procurei palavras para lhe dizer que, bom, que, como hei-de dizer, que
queria ali regressar com ela na Primavera.
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