… para onde foi o tempo que passou?
Livros do Escritor
terça-feira, 28 de abril de 2020
segunda-feira, 27 de abril de 2020
Dolorosamente
Já
passaram três dias, não sei o que hei-de fazer, meu filho, meu querido filho,
nem se levanta, é estranho, caiu num torpor, o estore para baixo, o quarto num
negrume, rejeita qualquer alimento, a voz sai-lhe arrastada, apenas o nome dela
nos é inteligível, maldita seja! Ainda há uma semana, ele em sorrisos, mais
esbatidos, é certo, ainda assim em sorrisos, logo que o via (“Chegou a minha alegria!”), abraçava-me sempre, meu filho, meu querido filho, como quando era menino,
embora, para uma mãe, os filhos nunca vão além da meninice, só o facto de
estar, enchia a casa, há quem tenha esse dom, falava-me dos projectos, dos
sonhos, dos anseios, e, é verdade, o nome dela omnipresente, Madalena, sempre
que proferia Ma-da-le-na, os olhos numa claridade primaveril, a voz amenizava,
talvez por soar mais melodiosa, Ma-da-le-na, todos sabíamos, melhor dizendo,
aqui em casa todos receávamos que se não proferisse Ma-da-le-na, o seu olhar
turvar-se-ia, foi num repente, sabe como é, as coisas marcantes na vida
ultrapassam-nos a imaginação, m as deixe-me recuar um pouco, para que possa
compreender melhor a claridade primaveril, no olhar, sempre que proferia
Ma-da-le-na, após três anos de namoro, ela simplesmente disse-lhe não sentir o
mesmo, como um vento que inopinadamente muda de direcção, o resto é o habitual,
palavras de circunstância para confortá-lo (”Foste muito importante para
mim. Nunca te hei-de esquecer. És
especial… Mas já não sinto a mesma coisa…”), a incredulidade tem o benefício de anestesiar, quando entrou, há uma
semana, com uma sombra no rosto, o sorriso em passos de timidez, o meu coração
soou-me os alarmes, nós, mulheres, temos essa vantagem, poucos homens o sabem,
o nosso coração vive no mesmo andar que a razão (...)
quarta-feira, 22 de abril de 2020
Oficina de corações
Olhava
o impressionismo exterior através da larga tela envidraçada da janela, tudo sob
a cadência balouçante da carruagem, no fundo, olhava o exterior para evitar os
rostos circundantes, talvez não lhe apetecesse sair de si, não lhe interessava
assim tanto a tela envidraçada, mas sim a possibilidade de se pensar sob uma
cadência balouçante, nem há um ano fizera este percurso em sentido inverso,
embora o impressionismo exterior fosse o mesmo, de facto, sob uma cadência
balouçante, é sempre o mesmo, numa contrariedade e angústia intraduzíveis, sabia
quem arquitectara a sua saída da casa paterna, contudo, a sua dor focara-se na
apatia do pai e não tanto nas maquinações da madrasta, talvez desconhecesse o
singelo facto de que, quando um homem cai aos pés de uma mulher, até lhe traz
as nuvens para servirem de chão, o seu sentir, pelo pai, oscilou entre uma
profunda decepção e uma inultrapassável amargura, por simultaneamente ser quem
mais admira, embora neste regresso, por uns escassos dias, não se possa falar
de decepção e amargura, hoje ela é outra, passou um ano e sentiu ter passado
uma existência, a mudança para a casa da mãe, mais de quatrocentos quilómetros a
Sul, de escola, a troca de madrasta por padrasto, tanta coisa, e uma questão regressava-lhe
(Sobreviverei? Sobreviverei?), e um espelho ficou a Norte, embora fosse o
acontecer a turvá-lo e não o tempo, dói mais, bem mais, mas também é rápido,
não reflectiu muito nos seus primeiros passos no novo ambiente, assumiu, desde
logo, que trouxera consigo o seu bem mais precioso, o “eu”, por
conseguinte, limitou-se a ser ela mesma, respondendo no mesmo tom irónico às
piadas sobre o seu sotaque, a recorrente questão (“Então, estás a
adaptar-te bem? Se precisares de alguma coisa, diz… Está a custar, não é? Novo
ambiente…”), decidiu esconder-se num
político sorriso, simultaneamente tudo esconde e esbate, as questões acabavam
por se silenciar, por uns tempos, manteve-se numa indistinta zona, despedia-se,
sem se aperceber e contra a sua vontade, da povoação a Norte, assimilava,
também contra a sua vontade, os hábitos e costumes actuais, se uma casa é um
mundo, com uma distância de mais de quatrocentos quilómetros, é toda uma nova
realidade, apurou a sua capacidade de observação, procurou, de todas as formas
possíveis, ocupar o tempo, o bem mais precioso no fim e simultaneamente aquele
a que mais viramos costas, nesta altura, ela estava longe de divisar a tormenta
que estava na sua rota (...)
domingo, 19 de abril de 2020
A Cor do Abandono
Hoje ele pediu-me para mostrar a casa
a um casal (estrangeiro?) que estaria interessado. Precisamente hoje, um
Domingo. Eu ainda ripostei, mas a mãe interveio. Que podia fazer? Todos sabemos
que é à sombra da mãe, que uma família repousa. Lá fui, contrariado. Porque não
ia ele? Que tinha para fazer num Domingo à tarde? Pelo que me apercebi, nada.
Só saía para trabalhar durante a semana. Os fins-de-semana, desde há uns meses,
passados hermeticamente no anexo que lhe cedemos nos fundos do quintal. Com
excepção das horas das refeições, claro. Afinal, todo o eremita tem de ter uma
mesa próxima. E este soube, muito bem, escolher a sua. Chegada a hora, lá fui.
Sempre contrariado. A minha mulher acompanhou-me à porta. Os meus passos
ritmados pela resmunguice. Ela: Está bem,
está bem, mas despacha-te, que ainda chegas atrasado. Olha que não devemos
perder estas oportunidades. E eu a pensar (Quais oportunidades? Na minha idade, já não encontro essa palavra no
dicionário. E ele dentro daquele anexo, a ver para onde aponta a sombra das
árvores). Felizmente, não era longe a casa. Ficava a cerca de 20 minutos da
nossa. Destacava-se das demais, por ficar ao cimo da rua. Assim que os meus
olhos nela, o carro desacelerou, até se imobilizar. Não, era aquela a casa.
Não, não havia nada de diferente. Mas eu tive de parar. Porque a diferença
estava comigo. O casal (estrangeiro?) ainda não tinha chegado. Desliguei o
carro, silenciei o rádio (apesar do relato em breve), abri os vidros na
totalidade, e olhei, apenas isso, talvez para assimilar aquela diferença de há
pouco, porque, talvez aí, nasça a compreensão da génese de um eremita. A casa
tinha dois pisos (apesar do segundo se assemelhar mais a um apêndice, ainda por
extirpar) e um terreno considerável. Era um desses bairros clandestinos, em que
as casas obedecem a padrões estéticos de correntes por enquanto incógnitas.
Talvez o tempo traga algum iluminado que reconheça uma similitude entre Nossa
Senhora e os anõezinhos, ou entre um leão e a torre Eiffel. E eu, no alpendre
da ignorância, sabia-me aquém destes imperativos do sublime. E os azulejos,
sempre no exterior, como se proclamassem ao mundo que, ali dentro, há um lugar
onde se pode aliviar dos pesos da existência. Mas, não sei porquê, hoje aquela
casa afigura-se-me diferente. Talvez porque o meu olhar se tenha demorado mais.
Não sei. Mas pareceu-me vê-la dizer adeus.
Conheceram-se há dois anos. Um dia
telefonou, como sempre à mãe, a dizer que trazia uma amiga para jantar.
Agradou-nos a ideia. Afinal, a idade casadoira estava no final do prazo. Assim
que o vi, nessa noite, apercebi-me. No fundo, foram mais os seus gestos a
denunciá-lo. A solicitude, num homem, brota sempre da mesma fraga. Dela não
gostei. A idade casadoira também no fim do prazo, mas com as ideias inatas de
um recreio de escola. E ele, embevecido, a disfarçar o habitual apetite de
cavalo, em garfadas de pardalito enjoado. Aquele serão pareceu-me uma noite de
insónias com origem numa irreprimível tosse, que nos faz procurar as órbitas,
vezes sem conta, na colcha da cama. Ele olhava-me, numa súplica muda de
tréguas, com receio que eu soltasse alguma sentença confrangedora. E o serão
arrastou-se. A mãe, como sempre, com a sua sombra refrescante. Mas quando o
assunto derivou para maternidade, a dita
amiga manifestou uma veemência até então desconhecida. O tolo anuía a tudo.
A sombra refrescante da mãe esbateu-se um pouco, talvez os ramos se agitassem.
E a amiga dissertou tanto acerca da
temática, que, por momentos, eu acreditei estar perante o obstetra de uma
qualquer maternidade. Finda a refeição, apenas anunciaram um até amanhã. Ela
nem se despediu do prato que deixou na mesa. Olhei a minha mulher. Os lábios
não se distenderam muito. Quando alguém que ainda não perdeu a fé nos homens,
permanece estática numa despedida, é porque acabou derrotada numa grande
batalha interior. E eles lá foram, noite adentro. Levantámos, os dois, a mesa.
E compreendemos, na linguagem da mudez, aquele malogro. Um lar constrói-se
sempre de fora para dentro. Aqueles iam construir, o seu, ao contrário. Como
tantos outros. Sem alicerces sólidos, a ruína está à mercê do tempo. Não sei se
durou um mês, até as malas dela povoarem o anexo. Desde aí, passou a falar-se
mais alto à hora das refeições. E também no resto do tempo. Até que a saída se
tornou uma inevitabilidade. Ela exibia, a determinada altura, o ventre dilatado
como um troféu e o tolo como um refém. Era uma guerra que ela travava consigo
própria. Provinha de um lar construído, também, de dentro para fora.
Compreendemos isso quando nos apresentou a sua mãe, uma senhora sexagenária,
oxigenada quanto baste, com um discurso oco, em que a palavra felicidade vinha
à liça com a mesma rapidez com que puxava por mais um cigarro. E eu a pensar (as palavras exigem o mesmo pudor que os
gestos, ou mais ainda).
Mudaram-se, dois meses antes da bebé,
para uma casa a cerca de vinte minutos de carro da nossa. Uma casa a proclamar
obras. Mas ela queria uma vivenda. Afinal, todos os conhecidos tinham uma. O
tolo correu ao banco. Ainda pediu a minha intervenção. Neguei-lhe. Praguejou.
Ia-me virando a ele. Afinal, o respeito, mas nisto, um ramo tocou-me no ombro,
e sussurrou-me: É ela a falar nele.
Empenhou-se todo. As obras começaram. Ela com laivos de capataz. Os meses
foram-se atropelando. A bebé veio reclamar o seu lugar no mundo. Só um mês
depois, é que ele nos veio apresentá-la. Nada se disse. Talvez a capataz
tivesse feito um intervalo de cabeleireiro. Tinha muitos interlúdios desse
tipo. O tolo, com a bebé nos braços, com um sentir a desenhar-se-lhe no rosto,
num perdoem-me mudo. A árvore logo a
estender os ramos, a dizer-lhe para repousar da fatigante jornada, a cobrir a
bebé com um suave arbusto, e eu a assistir, siderado, numa admiração sentida (...)
quinta-feira, 16 de abril de 2020
segunda-feira, 13 de abril de 2020
Foi no alto de uma colina, que aprendi a olhar o Mundo
Hoje fui ver a minha Escola Primária.
Pus-me ao caminho com a timidez e a abnegação de quem cumpre o dever de visitar
um familiar indevidamente negligenciado. Percorri aquela estrada paralela à
linha de comboio, e ao mar. Chegado a um certo ponto, vira-se à esquerda, e
enfrenta-se aquela íngreme subida. No cimo, à direita, lá estava aquela casa,
de três pisos, num irreconhecível silêncio. Olhou-me, com uma expressão entre a
indulgência e um tímido sorriso de agrado, e questionou: Sempre voltaste? Porque não haveria de voltar? (retorqui); Chegas tarde. Já sou outra (respondeu-me). E eu constrangido, consciente do meu
atraso, sem qualquer desculpa nos bolsos, a olhá-la do lado de fora do portão,
sem quaisquer laivos de me intrometer, respondi-lhe: Eu também sou outro. Mas a saudade… Ela num jeito de adeus: Tens de procurar noutro lado. Aqui nem os
ecos encontras. Olho, agora, a calçada. Dirijo-me para o carro. Abro a
porta. E, sim, lá está ela (sem estar), a árvore, no recreio (que já não é), de
onde caí. Perscrutei o ramo específico (como era longo!), mas a árvore também
outra. Cai em mim o peso do adeus. E eu que nunca tive forças para o suster.
Encosto-me ao carro. Queixo no tejadilho. Ouço um motor na estrada lá em baixo.
Uma viatura no esforço da subida. É uma carrinha cinzenta, pára entre mim e a
casa. Lá de dentro sai movimento e alegria. O motorista (Sr. Costa? É mesmo
ele?) inspira o crescente silêncio do interior despovoado da viatura. A minha
atenção, agora, no barulho, em particular num miúdo que ostenta,
orgulhosamente, uma bola por chutar. Surge um irreprimível barulho por toda a
casa. E pelos recreios. No fundo, nasce vida. Olho, de novo, a casa. Não, já
não tem aquele olhar invernal de há pouco. Olha à sua volta como se também
acabasse de sair da carrinha. Alguém chama para dentro. Os jogos interrompem-se
numa aura de capitulação. O miúdo da bola ainda a segura orgulhoso e
determinado. Apesar dos inúmeros argumentos apresentados. Apesar das várias
ofertas comerciais. Ele irredutível. Queria estreá-la no intervalo grande (o do
almoço). Contorno o carro, nem dei pela partida do Sr. Costa, mas ele nunca
partiu (ainda hoje, quando saio de casa pela manhã, espero por uma carrinha
Bedford cinzenta), olho para dentro da sala do piso térreo, e observo o miúdo
da bola a abrir a mala e a depositar escola em cima da mesa. Olhos na
professora, mas antes de mergulhar nos livros e nos cadernos, sempre a janela,
e aquela extensão azul líquida, que sempre lhe pareceu pequena para depositar
os sonhos que trazia no peito.
Vou-me embora. Não quero incomodar a
aula. Percebeste? (Diz-me ela). Acho que sim (respondo; é a única
resposta possível, quando o coração bate nas omoplatas). Já dentro do carro, a
iniciar a descida, procuro de novo o miúdo da bola. Queria dizer-lhe para nunca
sair dali, afinal, estava numa casa, no cimo de uma colina, entre livros,
árvores, e azul a perder de vista. E que, se algum dia sair, não se esqueça de,
num gesto de bem-haja, beijar a face de quem lhe apresentou o mundo num rectângulo
de lousa. Talvez no futuro, ele queira contar histórias passadas entre verdes e
azuis, de quem olha por janelas, e sonhe alcançar num gesto aquele barco que
vai em direcção a Sul (…)
domingo, 12 de abril de 2020
quinta-feira, 9 de abril de 2020
A Porteira
A
primeira vez que nela reparei foi a meio de uma manhã, ia a sair, ela em
sentido contrário, deteve-se, em pleno átrio do prédio, e olhou-me longamente,
de cima a baixo, tal foi o meu desagrado com aquela desmedida intromissão, que
me ocorreram múltiplas invectivas, contudo, prevaleceu a educação recepcionada
de meus pais, e condensei todo o meu desprezo num olhar que gentilmente lhe devolvi,
por acaso, nunca tinha ouvido uma palavra abonatória acerca daquela criatura,
logo eu que sempre gostei de inferir o mundo pelos meus juízos, porém, após
este e outros acontecimentos, que seguidamente irei relatar, tenho somente de
corroborar os pareceres chegados, neste ponto, e pelo título deste relato, o
leitor já percebeu que falo de uma porteira, aproxima-se dos sessenta,
olhando-a de qualquer perspectiva apenas uma imagem esférica, o cabelo quase
sempre apanhado, apenas acentua um carácter de vileza, por fim, uns óculos de
massa com sabor a três décadas, era comum vê-la de xaile sobre os ombros, sobretudo
em dias frios, dava passos curtos e arrastados, talvez para não se
desequilibrar, nessa noite, ao jantar, comentei com meus pais o desagrado com
aquela intromissão em pleno átrio do prédio, reparei que se entreolharam
durante o necessário, numa esperança muda de que eu não notasse, reforçaram a
necessidade de educação com os outros e apelaram à benevolência com os mais
velhos, encolhi os ombros, mas não me passou despercebido o seu constante entreolhar,
quando tal sucedia era sinal de que eu tinha razão, embora, por pedagogia, não
me quisessem concedê-la, semanas após a primeira troca de olhares, ouvi minha
mãe, num tom arrebatado, “Onde
já se viu uma coisa destas? Só neste prédio é que essa mulher conseguia ser
porteira! Põe e dispõe perante a apatia de todos! Primeiro, conseguiu que lhe
concedessem a casa do rés-do-chão a troco da limpeza do prédio… Agora, ainda
lança a escada para um ordenado fixo! E vais ver que consegue! Quando for a
votação, na reunião de condomínio, quero ver quem se irá opor! Não compreendo,
desculpa, mas não compreendo… Todos se calam! Onde estão os homens?”, não ouvi meu pai contra-argumentar muito,
percebi, mais ou menos, o modus operandi
da criatura de imagem esférica,
uns óculos de massa com sabor a três décadas, passos curtos e arrastados,
talvez para não se desequilibrar, uma estratégia tão bolorenta, dividia para
reinar, criou um grupo de condóminos, como é natural espelhos seus, mulheres
que avistavam ou já tinham dobrado o sofrível cabo da menopausa, regra geral
com casamentos de hábito, onde nem cinzas de paixão, se as houve, o vento há
muito as diluíra pelos céus do mundo, ou nem ao casamento chegaram, permanecem
sós, solteiras ou abandonadas, num indisfarçável traço de frustração que se
lhes grita do rosto aos gestos, por conseguinte, aquando da votação, o séquito
levantava o braço balofo sob a orientação dos óculos de massa com sabor a três
décadas, e lá conseguiu ser remunerada para além de ocupar a casa do rés-do-chão, quanto à limpeza,
manifestamente sofrível, subsiste, é mais o tempo que fica atrás da porta a
ouvir conversas, de forma a extrair informações da vida alheia que
oportunamente possa jogar a seu favor, do que a limpar o chão...
quarta-feira, 8 de abril de 2020
segunda-feira, 6 de abril de 2020
sexta-feira, 3 de abril de 2020
Tenho Saudades de Mim
Ele já não se recorda do exacto
momento em que ali entrou. Daquele preciso instante em que se atravessa uma
linha (sempre divisora de realidades). Afinal, é essa a sua razão de existir.
Mas ele era pródigo em transgressões. Aquela estranha coisa dos limites… O que
é isso de um limite? Não será sempre um espartilho? Embora o seu espartilho
momentâneo, porém, seja de outra ordem. Um esforço superlativo para ser. Logo
que atravessou as portas envidraçadas, a profusão de cheiros. As pernas
cederam. Ela, a seu lado, contrariada por ali estar. Só tinha um apetite (o de
não ser). Mas ele arrastou-a. Não foi difícil (um corpo de treze anos
emoldurado por um rosto de cinquenta; embora, em verdade, andasse pelos vinte e
seis). Pelo movimento de gente, seria aí pelo meio da tarde. Sim, eles tinham
despertado há pouco. Estavam sem carrinho. Talvez por não haver força para o
empurrar. Mas, depois, como levar os sacos? Eles também não iam abastecer
qualquer frigorífico. Apenas sobreviver. Nada mais. Começaram pelos iogurtes.
Logo ali. Um para cada. A sabedoria da natureza: quando um corpo apenas implora
por algo vital, cansado de tanto veneno, é por já avistar a outra margem. E
eles sôfregos, reanimados pelas efémeras calorias, partem em busca da padaria,
indiferentes a olhares e gestos (que apenas prenunciam um desprezo e nojo
inesgotáveis).
Na padaria, uma senhora, com a idade do respeito, providencia o
seu lanche (e talvez dos netos) com o cumprimento da sua carteira.
Parcimoniosamente. Ele, proveniente de outra realidade espácio-temporal,
grosseiro para a senhora (afinal, desconhecia parcimónia), agreste à lentidão
(a vertigem da necessidade requer velocidade), a empregada da padaria ameaça
com o segurança (que há muito os conhecia, mas receava a hora do fecho), por
fim, ela intervém, e ele afasta-se da padaria e abastece-se nas bolachas, o
olhar da idosa nela (uma sincera compaixão eivada de uma genuína tristeza), e
ela, agora, mais fraca. A partir dali, apenas aquele olhar. Ela sempre a
diminuir. Abrira-se a porta do passado. A arqueologia de um corpo no presente,
a alma num passado, não tão longínquo assim. Uma casa com uma família. De vez
em quando, a visita de uma avó. Com um carinho lento (sempre o verdadeiro). A
mão que lhe passava no rosto (e verbalizava: Vais dar muitas alegrias a esta tua Avó, não é verdade, minha filha?
Quero viver, para te ver a subir os degraus da faculdade. Hás-de ser médica,
para depois cuidares de mim). Agora, num qualquer lugar de sombras e
cimento, ele prepara a sua verdadeira refeição. E a dela também. Afinal, ele é
generoso. E neste exacto momento, ela olha a realidade como um todo: na
evidência do seu presente, com o peso trazido do passado, e com a mais provável
colheita do devir. Só se tem a noção
de totalidade quando o tempo se funde. Ele, absorto com o preparo, numa minúcia
de cirurgião, a olhar a seringa numa familiaridade inata de profissional,
iniciava a sua jornada além tempo.
Ela a fundir-se com a parede. A
relembrar aquele sorriso que a desarmou. Continuava a olhá-lo. A procurar
resquícios do passado naquele pardacento vulto que ali estava, diante de si, a
emitir onomatopeias indecifráveis. Um sorriso gabado em toda a escola.
Sobretudo no sector feminino, claro. Mas foi nela que mais se demorou. Curioso,
com a idade ele desaprendeu a lentidão. É quando se vive ao contrário. Ela
sucumbiu ao sorriso. Em casa dela, foi bem acolhido. Mesmo pela Avó. A tormenta
começou cerca de dois anos depois. O desconhecido. A ânsia de ir além. Ela
ainda procurou refreá-lo. Primeiro, fumos no carro, em lugares tímidos. Ela não
achava graça. Mas aquele sorriso podia fugir-lhe. Daí… Em casa, não lhe
estranhavam as alegrias fora de estação. Só a Avó, quando estava de visita,
retinha a testa. Chamou a atenção do filho e da nora para o perigo daquele sorriso
cada vez mais amarelecido, mas os empregos têm o dom de endurecer os ouvidos.
Até que, num final de tarde, não houve fumos. Nova transgressão. Afinal, ela
sempre ia aprender a usar instrumentos da medicina. A princípio, recusou-se.
Ele apenas uma expressão (Acompanha-me,
tenho medo de me perder). E aquele sorriso que se esbatia, de instante para
instante, e ela, logo a seguir, a enterrar, num antebraço trémulo, pelo garrote
improvisado da fita do cabelo, pelo genuíno medo, aquela agulha fria, a fechar os
olhos, a entreabrir os lábios, e a despedir-se de quem era (…)
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