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sexta-feira, 23 de março de 2018

Rua dos Amores Perfeitos





Olhe, não sei porquê, mas há ali qualquer coisa que não bate bem. Sabe, ninguém me tira isto da cabeça, desde que a vi, o pateta, tudo embevecido, a trazê-la, ainda por cima, de mão dada, lá a casa, a virar-se para nós “Pai, Mãe, esta é a Matilde”, ela, de pastilha na boca, a cumprimentar-nos, não sei se foi a pastilha na boca, a expressão, o jeito, ou o conjunto, mas houve, logo ali, algo que me desagradou profundamente, ou talvez o desagrado proviesse dele, percebi, assim que nos apareceu com ela, como estava perdido, sabe como é, quem já passou pela coisa, reconhece logo os sinais, e a forma de lhe dizer o nome, quase levantava os pés do chão a cada sílaba (Ma-til-de), uma tristeza, ela só olhava à volta, como uma recém-chegada salteadora a avaliar o potencial do saque, sentaram-se no sofá maior, bem diante de mim, o tolinho continuava a dar-lhe a mãozita, ela a aceitar entre o enfado e o dever, a mãe (é curioso, já nem me lembro quando assim comecei a chamá-la: mãe. Como é possível? Houve uma altura em que, também eu, levantava os pés do chão a cada sílaba, I-re-ne, e o ar que se me ia quando a sabia longe, para, agora, na comodidade de amanhãs sabidos e de tantos ontem, no tédio de ser, I-re-ne dar lugar a um esquivo e tão cansado mãe) com uma bandeja, sempre num precário equilíbrio, de chávenas para o chá, não me escapou o seu espanto ignorante à vista das chávenas, pelo menos, manteve o silêncio, ou talvez avaliasse quanto conseguiria pelas chávenas e bandeja, pois, é possível, percebi que a chávena foi um óptimo pretexto para lhe fugir com a mão, ele com um traço de orfandade na expressão, à vista da evidência vazia da sua mão ainda aberta, ela pegou com avidez a chávena, não sei porquê, mas o gesto seria o mesmo fosse uma chávena de chá ou uma caneca de cerveja, talvez com a segunda hipótese estivesse bem mais familiarizada, disso não tenho dúvidas, o trivial, como quase sempre sucede, norteou os passos da conversa...

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