Aquela frase (Veja lá se cuida de si, homem), hoje, diante de mim, de certa
forma, como se tivesse regressado, com um propósito, talvez para me relembrar
que, pois, talvez por aí, assim que a ouvi, virei-me, com a esperança de um
rosto, embora soubesse que o destinatário do - Veja lá se cuida de si, homem – fosse outro… Não se pode dizer que
não gostasse da minha vida, nada disso, casada, dois filhos, ainda por cima um
casalinho, ele mais velho três anos, uma casa agradável, nada de luxos, é
verdade, mas tinha todas as comodidades, a única coisa que me incomodava um
pouco, não assim tão pouco, já que estamos com esta mania das verdades, era
aquela sua apatia face a tudo, e sempre com o cigarro, o que me irritava aquele
cigarro, apesar de também fumar, e há tanto que o faço, mas nele, não sei
porquê, irritava-me, parecia que lhe acentuava aquela apatia, trabalhava como
engenheiro numa construtora, era o primeiro a sair de casa, já de cigarro na
boca, e parecia-me, não sei se era só uma vaga impressão, que falava cada vez
menos, ia para a estação a pé, com o tempo parecia que se divorciara do carro,
que para ali ficava a remoer desamparos e costas voltadas, o miúdo (um filho
nunca cresce para os pais) também caminhava pelas engenharias, ela ainda
indecisa no términus do liceu, eu apanhava diariamente boleia de um casal
vizinho para a repartição pública onde trabalhava há quase década e meia,
ficava-lhes a meio do seu também diário trajecto, e como havia quotidianamente
um recorrente tema de conversa, mas é curioso, sempre a apresentei a terceiros
como minha vizinha, ou pelo nome,
claro, jamais usei o epíteto de amiga,
ela também usava o mesmo diapasão, são as tais zonas de silêncio, onde o verbo
se torna uma obscenidade, regressava de comboio, mas nunca por ali encontrei um
cigarro a acentuar apatias, depois de fechar a porta de casa, às vezes, ainda a
mulher-a-dias por ali, aproveitava para lhe dar indicações para o dia seguinte,
bem sei que, entre os vizinhos, nesta altura, houvesse invejas pelo facto de
serem outras mãos a cuidar da limpeza do que é nosso, mas não me ralava nada,
chegada do trabalho, eu queria era sentar-me na esplanada do café em frente, a
folhear as revistas da moda, era disso que eu mais gostava, dava por mim, não
raras vezes, durante o dia, a suspirar por este momento, na esplanada do café
em frente, a folhear as revistas da moda, tinha a maior parte das vezes como
companhia a vizinha que me dava boleia de manhã, sempre a apresentei a
terceiros como minha vizinha, ou pelo
nome, claro, jamais usei o epíteto de amiga,
ela também usava o mesmo diapasão, são as tais zonas de silêncio, onde o verbo
se torna uma obscenidade, percebia-se-lhe uma latente fuga da ruralidade, nos
gestos, palavras, vestuário, vaticinava-lhe sucesso, no entanto, ainda não
terminara, gostava de conversar com ela, não obstante um par de anos mais
velha, ouvia-me com um fascínio reverencial, pois, ainda a fuga da ruralidade,
o facto de o marido ser vendedor de artigos de construção, só lhe atrasava os
passos da fuga, sempre que se referia ao meu era o senhor engenheiro, ria-me interiormente, aquela sua apatia face a
tudo, e sempre com o cigarro, o que me irritava aquele cigarro, apesar de
também fumar, e há tanto que o faço, mas nele, não sei porquê, irritava-me,
parecia que lhe acentuava aquela apatia, confesso que gostava daquela atenção
desmedida, do fascínio reverencial, há tanto que ninguém segue assim as minhas
palavras, o senhor engenheiro numa
apatia crescente, consagrado ao fumo daquele infindável cigarro que tanto me
irrita, o miúdo (um filho nunca cresce para os pais) às voltas com a
calculadora e com a namorada, a miúda (uma filha também nunca cresce para os
pais, ou talvez o faça demasiado depressa) sempre a falar da próxima noite de
Sábado, com um sublimado pedido de saída, ou de penteados e mexericos com as
amigas, não me lembro da última vez em que, algum deles, se sentou diante de
mim, na esplanada do café em frente, por mais que um minuto, confesso que me
dava imenso jeito a boleia, todos os dias, de manhã, ficava-lhes a meio do seu
também diário trajecto, permitia-me sair uma hora depois de casa, e poupava-me
à infindável sucessão de encontrões das viagens matinais de comboio, para
retribuir com algo, sentia-me na obrigação de lhe ensinar a melhor direcção na
sua fuga da ruralidade, e como eu gostava daquela atenção desmedida, do
fascínio reverencial, às minhas palavras, ela só tinha um filho, teria
aproximadamente a idade do nosso, a certa altura, falou-se no bairro das
companhias, ela jamais comentou alguma coisa, nem nas boleias matinais, nem nos
cafés vespertinos, também nunca lhes denotei algo de diferente, nem nos gestos,
nem nas vozes, ao contrário do senhor
engenheiro, o marido dela coloria as palavras de emoção e graça, quantas
vezes, nas boleias matinais, não dei por mim em gargalhadas, tão distinto da
austeridade nocturna da nossa casa, apesar de termos uma das primeiras
televisões a cores do bairro, ele com o infindável cigarro e a galopante
apatia, certa manhã, a boleia atrasou-se, parece que, durante a noite, a
polícia os visitou, confirmou-se que o filho com muito más companhias, o bairro
expressou a sua desaprovação, felizmente, o meu menino quase a suceder ao pai
como senhor engenheiro, o tempo lá
continuou o seu caminho de aparência invisível, consegui uma repartição mais
próxima de casa, já não precisei de mais boleias, entretanto, abriu um café com
uma esplanada bem mais solarenga, optei por essa, e, em verdade, parecia mal
que a mulher do senhor engenheiro apanhasse
boleia daquele casal com um filho que andava com tão más companhias, depois
dessa visita nocturna das autoridades, talvez por vergonha, soube que mudaram
de casa, perdi-lhes o rasto, o tempo lá continuou o seu caminho de aparência
invisível, foi mais ou menos quando pus os papéis para a reforma, que um amigo
nosso se sai com esta Veja lá se cuida de
si, homem, a partir daqui, tudo se traduziu numa queda, a magreza, uma
crescente palidez, médico, exames, outros médicos, uma frase que tanto me
cansou (Tem de largar o cigarro já!),
mais exames, mais médicos, a magreza continuava a ganhar terreno, tal como a
palidez, o hospital, além dos filhos, a visitá-lo, somente eu e o meu irmão,
nem um colega de trabalho, nem um vizinho, nas horas de visita, o omnipresente
ponteiro do relógio de parede a relembrar a nossa insuficiência, como se cada
segundo fosse um passo que o distanciasse de nós, por vezes, ele na súplica por
um cigarro, nesses momentos, quem me dera saber o que fazer, logo eu, que fui
ouvida com uma atenção desmedida e um fascínio reverencial, certa tarde, já
sabíamos que ele perdera a corrida para o mal que o habitava, era uma questão
de dias, informara-nos o médico, numa
indiferença de talhante, saberia ele que o meu marido era um senhor engenheiro? Deambulava eu, pelos
corredores do hospital, surda para o que me rodeava, a arrastar uma dor que me
puxava para a terra, quando a vi, ao fundo, veio ao meu encontro, enquanto se
aproximava, não consegui reprimir um sorriso, afinal, nesta vida, há corridas
que se vencem…
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