Livros do Escritor

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sexta-feira, 4 de abril de 2025

Que ninguém diga que está bem

 


Aquela frase (Veja lá se cuida de si, homem), hoje, diante de mim, de certa forma, como se tivesse regressado, com um propósito, talvez para me relembrar que, pois, talvez por aí, assim que a ouvi, virei-me, com a esperança de um rosto, embora soubesse que o destinatário do - Veja lá se cuida de si, homem – fosse outro… Não se pode dizer que não gostasse da minha vida, nada disso, casada, dois filhos, ainda por cima um casalinho, ele mais velho três anos, uma casa agradável, nada de luxos, é verdade, mas tinha todas as comodidades, a única coisa que me incomodava um pouco, não assim tão pouco, já que estamos com esta mania das verdades, era aquela sua apatia face a tudo, e sempre com o cigarro, o que me irritava aquele cigarro, apesar de também fumar, e há tanto que o faço, mas nele, não sei porquê, irritava-me, parecia que lhe acentuava aquela apatia, trabalhava como engenheiro numa construtora, era o primeiro a sair de casa, já de cigarro na boca, e parecia-me, não sei se era só uma vaga impressão, que falava cada vez menos, ia para a estação a pé, com o tempo parecia que se divorciara do carro, que para ali ficava a remoer desamparos e costas voltadas, o miúdo (um filho nunca cresce para os pais) também caminhava pelas engenharias, ela ainda indecisa no términus do liceu, eu apanhava diariamente boleia de um casal vizinho para a repartição pública onde trabalhava há quase década e meia, ficava-lhes a meio do seu também diário trajecto, e como havia quotidianamente um recorrente tema de conversa, mas é curioso, sempre a apresentei a terceiros como minha vizinha, ou pelo nome, claro, jamais usei o epíteto de amiga, ela também usava o mesmo diapasão, são as tais zonas de silêncio, onde o verbo se torna uma obscenidade, regressava de comboio, mas nunca por ali encontrei um cigarro a acentuar apatias, depois de fechar a porta de casa, às vezes, ainda a mulher-a-dias por ali, aproveitava para lhe dar indicações para o dia seguinte, bem sei que, entre os vizinhos, nesta altura, houvesse invejas pelo facto de serem outras mãos a cuidar da limpeza do que é nosso, mas não me ralava nada, chegada do trabalho, eu queria era sentar-me na esplanada do café em frente, a folhear as revistas da moda, era disso que eu mais gostava, dava por mim, não raras vezes, durante o dia, a suspirar por este momento, na esplanada do café em frente, a folhear as revistas da moda, tinha a maior parte das vezes como companhia a vizinha que me dava boleia de manhã, sempre a apresentei a terceiros como minha vizinha, ou pelo nome, claro, jamais usei o epíteto de amiga, ela também usava o mesmo diapasão, são as tais zonas de silêncio, onde o verbo se torna uma obscenidade, percebia-se-lhe uma latente fuga da ruralidade, nos gestos, palavras, vestuário, vaticinava-lhe sucesso, no entanto, ainda não terminara, gostava de conversar com ela, não obstante um par de anos mais velha, ouvia-me com um fascínio reverencial, pois, ainda a fuga da ruralidade, o facto de o marido ser vendedor de artigos de construção, só lhe atrasava os passos da fuga, sempre que se referia ao meu era o senhor engenheiro, ria-me interiormente, aquela sua apatia face a tudo, e sempre com o cigarro, o que me irritava aquele cigarro, apesar de também fumar, e há tanto que o faço, mas nele, não sei porquê, irritava-me, parecia que lhe acentuava aquela apatia, confesso que gostava daquela atenção desmedida, do fascínio reverencial, há tanto que ninguém segue assim as minhas palavras, o senhor engenheiro numa apatia crescente, consagrado ao fumo daquele infindável cigarro que tanto me irrita, o miúdo (um filho nunca cresce para os pais) às voltas com a calculadora e com a namorada, a miúda (uma filha também nunca cresce para os pais, ou talvez o faça demasiado depressa) sempre a falar da próxima noite de Sábado, com um sublimado pedido de saída, ou de penteados e mexericos com as amigas, não me lembro da última vez em que, algum deles, se sentou diante de mim, na esplanada do café em frente, por mais que um minuto, confesso que me dava imenso jeito a boleia, todos os dias, de manhã, ficava-lhes a meio do seu também diário trajecto, permitia-me sair uma hora depois de casa, e poupava-me à infindável sucessão de encontrões das viagens matinais de comboio, para retribuir com algo, sentia-me na obrigação de lhe ensinar a melhor direcção na sua fuga da ruralidade, e como eu gostava daquela atenção desmedida, do fascínio reverencial, às minhas palavras, ela só tinha um filho, teria aproximadamente a idade do nosso, a certa altura, falou-se no bairro das companhias, ela jamais comentou alguma coisa, nem nas boleias matinais, nem nos cafés vespertinos, também nunca lhes denotei algo de diferente, nem nos gestos, nem nas vozes, ao contrário do senhor engenheiro, o marido dela coloria as palavras de emoção e graça, quantas vezes, nas boleias matinais, não dei por mim em gargalhadas, tão distinto da austeridade nocturna da nossa casa, apesar de termos uma das primeiras televisões a cores do bairro, ele com o infindável cigarro e a galopante apatia, certa manhã, a boleia atrasou-se, parece que, durante a noite, a polícia os visitou, confirmou-se que o filho com muito más companhias, o bairro expressou a sua desaprovação, felizmente, o meu menino quase a suceder ao pai como senhor engenheiro, o tempo lá continuou o seu caminho de aparência invisível, consegui uma repartição mais próxima de casa, já não precisei de mais boleias, entretanto, abriu um café com uma esplanada bem mais solarenga, optei por essa, e, em verdade, parecia mal que a mulher do senhor engenheiro apanhasse boleia daquele casal com um filho que andava com tão más companhias, depois dessa visita nocturna das autoridades, talvez por vergonha, soube que mudaram de casa, perdi-lhes o rasto, o tempo lá continuou o seu caminho de aparência invisível, foi mais ou menos quando pus os papéis para a reforma, que um amigo nosso se sai com esta Veja lá se cuida de si, homem, a partir daqui, tudo se traduziu numa queda, a magreza, uma crescente palidez, médico, exames, outros médicos, uma frase que tanto me cansou (Tem de largar o cigarro já!), mais exames, mais médicos, a magreza continuava a ganhar terreno, tal como a palidez, o hospital, além dos filhos, a visitá-lo, somente eu e o meu irmão, nem um colega de trabalho, nem um vizinho, nas horas de visita, o omnipresente ponteiro do relógio de parede a relembrar a nossa insuficiência, como se cada segundo fosse um passo que o distanciasse de nós, por vezes, ele na súplica por um cigarro, nesses momentos, quem me dera saber o que fazer, logo eu, que fui ouvida com uma atenção desmedida e um fascínio reverencial, certa tarde, já sabíamos que ele perdera a corrida para o mal que o habitava, era uma questão de dias, informara-nos o médico, numa  indiferença de talhante, saberia ele que o meu marido era um senhor engenheiro? Deambulava eu, pelos corredores do hospital, surda para o que me rodeava, a arrastar uma dor que me puxava para a terra, quando a vi, ao fundo, veio ao meu encontro, enquanto se aproximava, não consegui reprimir um sorriso, afinal, nesta vida, há corridas que se vencem…

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