Livros do Escritor

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domingo, 6 de abril de 2025

Consolação

 


Antes da chave na porta, já lhe ouvira os saltos no patamar, a porta a abrir e fechar-se, o elevador, num lamento mecânico, a caminho de outras altitudes, a carteira pousada à pressa, o prolongado gemido da porta-da-despensa, por fim, uma breve luta para abrir algo, encosta-se à bancada e suspira, de onde estava, no sofá, frente à televisão, visualizava, no pensar, cada passo da filha, ia para dois meses desta cadência, acabava, minutos depois, por lhe aparecer, cumprimentos, frases de circunstância, tudo muito pela superfície, bastavam os olhares para se compreender a desolação pressentida, filhos e pais, a partir de certa idade, simplesmente não devem coabitar, antagónico à ordem natural do existir, as circunstâncias levaram-na a desgraçadamente regressar ao ninho materno (se assim se pode designar), apesar das vincadas diferenças entre elas, quando dali partira, há cerca de quinze anos, afirmara “Só aqui regresso, para vos visitar…”, o pai ainda presente, em verdade, a frase era-lhe dirigida, entre elas sempre vincadas diferenças, a vida e o seu enlear levaram-na a capitular quantos dos seus valores? Contra os desígnios maternos, juntou-se a um sujeito mais velho, divorciado, pai de dois filhos, a mãe incessantemente lhe repetia (“Casar rima com alguma segurança, juntar é de uma total insegurança”), ela prontamente rebatia com conceitos oníricos de Felicidade e Realização, a mãe respondia (“Casar rima com alguma segurança, juntar é de uma total insegurança”), passados oito meses, anuncia aos pais a sua gravidez, vendia viagens na agência do sujeito, aí se conheceram, embora detestasse fazer as malas, aqui se vislumbrava uma primeira fissura que não passou despercebida ao atento olhar materno, ele sempre prontinho para o próximo destino, assim que soube da gravidez aparentou entusiasmo, a paternidade não lhe era estranha, não é possível, a quem está de fora, percepcionar a força e magia dos invisíveis laços que levam um homem e uma mulher a caminhar na mesma direcção, oito semanas depois de anunciar aos pais a sua gravidez, certo final de tarde, a olhar os sapatos, num murmúrio, comunica-lhes que não vingou, o médico, por precaução, desaconselhou novas tentativas, o problema era dela, estrutural, o pai abraçou-a prontamente, a mãe questionava a razão de a filha ali estar sozinha a dar-lhes tal notícia, pensou em questioná-la onde estava o sujeito, a emoção da cena fê-la silenciar-se, há muito não via pai e filha tão irmanados na dor, sabia do seu sonho de ser avô, agora, nesse final de tarde, esfumado, não conseguiu levantar-se e abraçar a filha, o marido já o fizera por si, permaneceu sentada e emitiu frases de ocasião, o facto de a filha ali estar só, a dar-lhes tal notícia, apenas lhe causava repulsa, em verdade, nem conseguia fitá-la,  não era também seu objectivo ser avó, tal como mãe, daí só ter aceitado o facto por uma vez, tudo fez para que não se repetisse – quando lhe puseram aquela pequena criatura nos braços, enrugada, ruborescida, que se contorcia como um idoso, em busca de uma posição que lhe pacificasse ossos e articulações, olhou-a como uma estranha, ainda procurou, em si, de todas as formas possíveis, ligar-se àquele diminuto ser que segurava, um espelho, algo seu por ali derramado, nada, essa foi a verdade, nada, por si ecoaram frases ocas repetida e exaustivamente propaladas (“É um momento único! Inexplicável! Tornamo-nos logo outras… A vida muda naquele segundo… Deixamos de importar, só o bebé… Até o nosso respirar muda… Nada de iguala àquele instante em que nos depositam o bebé nos braços… Vale por uma vida! Não se encontram palavras à altura de tal sentir…”), ela ainda procurou, de todas as formas possíveis, ligar-se àquele diminuto ser que segurava, um espelho, algo seu por ali derramado, nada, essa foi a verdade, nada –, sentiu padecer de um qualquer inominável mal, foi dos momentos de maior solidão da sua existência, talvez o maior, naquela madrugada, com a bebé nos braços, olhá-la e nem vislumbres de um sentir cantado desde tempos imemoriais, um sentir que jamais ousou comunicar, pois, sentiu padecer de um qualquer inominável mal, extenuada, dorida, sapiente de que a dor maior jamais poderia verbalizar, levaria dali uma estranha, nos braços, para casa, uma noite de hospital é a eternidade, quando a luz se apagou, ela só se recorda de virar costas, ao berço plástico ao lado da cama, e rezar pela misericórdia de um sono que a levasse para bem longe dali, apesar de ela jamais verbalizar o seu sentir, com o tempo, a filha bebeu-o, o olhar na direcção da mãe apenas reflectiu esse fel, quando o pai se aproximava, o rosto suavizava-se e o olhar em luz, assim decorreram os anos entre eles, vendo bem as coisas, sob a luz do tempo, a verdade é que o pai não insistiu muito em dialogar por outro filho, é possível que, nos primeiros meses, em múltiplas ocasiões, a visse de costas voltadas para o berço a seu lado, há coisas, na vida, que sabemos, no entanto, incompreensivelmente não queremos acreditar, por conseguinte, atiramos para uma indistinta zona de nós, algures entre indizível e o esquecimento, para continuarmos a respirar com quem vive sob o mesmo tecto, as circunstâncias levaram-na a desgraçadamente regressar ao ninho materno (se assim se pode designar), apesar das vincadas diferenças entre elas, quando dali partira, há cerca de quinze anos, afirmara “Só aqui regresso, para vos visitar…”, o olhar da mãe gritava-lhe essa frase, sentia-o de onde estava, encostada ao balcão da cozinha, de olhos fechados, a saborear, com lentidão, cada quadrado do chocolate que há pouco abrira, precisava daquele doce para equilibrar o tanto fel que a habitava.

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