Livros do Escritor

Livros do Escritor

domingo, 27 de abril de 2025

Já esqueceste o Canto-da-Sereia? III

 


Ela percebeu-lhe a distância logo de início, o ar apatetado, sonhador, de criança com um brinquedo novo, um renovado zelo com a indumentária, a minuciosa utilização do perfume, não era necessária muita agudeza no olhar para inferir tais mudanças, ele também não procurava ocultar, imbuído que estava em retornar ao início da caminhada, uma nova possibilidade de corrigir passos erráticos, nada lhe passou despercebido, ela de vinte e poucos anos, com o desgosto, passou a aparentar quarentas e…, olheiras, as maçãs do rosto descaídas, uma magreza e flacidez simultâneas, das piores combinações possíveis, quando o olhava, a seu lado, na cama, concluíra que o coração de uma mulher só conhece uma Primavera, e a sua terminou, há muito, numa manhã de Domingo, com um indesejado regresso à casa paterna, entre eles  nunca houve paixão, apenas sexo, ela cedo aportou a esta certeza, porém, não iria regressar uma segunda vez à casa paterna, jurou para si mesma que, aos olhos da família, não voltaria a fracassar, já aos seus, a história é outra, tal como a dor, daí a sua incomunicabilidade, vive, adormece e desperta em nós, compreendemos que, com o tempo, nos subtrai dias, embora manifestemos gratidão pelo conhecimento proporcionado, não há melhor mestre, em verdade, queremos exorcizá-la, seja qual for o preço, começa por nos matar sonhos, cedo se viu privada dos seus, o desgosto precoce, que de vinte e poucos anos passou a aparentar quarentas e…, fê-la distanciar-se das coisas, uma indesejada imunidade face ao sentir, só não lhe toleraria infidelidade sob o mesmo tecto, a cidade não era assim tão extensa, corria o risco de ser visto pela família dela, isso jamais admitiria, por ora, só tinha suspeitas, apesar de o seu coração gritar e a razão o silenciar, desde há sete ou oito meses, intimidades só havia uma ou duas vezes por mês, tudo muito mecânico, ele já nem a beijava, ela grata, também só queria retirar a sua dose de prazer, nada mais, ambos, no fundo, satisfaziam uma necessidade fisiológica, os diálogos apenas sobre o circunstancial, filhos, contas, refeições, compras, ele nunca lhe perguntou pelos sonhos, ela retribuiu com o seu silêncio, cedo percebeu que a paternidade não lhe estava no sangue, limitava-se e mal a cumprir com as suas obrigações, enquanto, para ela, foram as luzes da sua consolação, quando regressava, aos fins-de-semana, à casa paterna, para visitar, com as duas filhas, a sua lado, sentia-se triunfal, percebia, no olhar que os pais derramavam sobre as netas, uma irreprimível emoção, longe do fracasso de há muito que fê-la de vinte e poucos anos aparentar quarentas e…, das três filhas foi a única, até então, a dar netos aos pais, algo que lhe permitia, de forma significativa, expiar um indesejado regresso à casa paterna, há bem mais de uma década, numa manhã de Domingo, ele raramente a acompanhava nestas visitas, escudava-se nas suas corridas de fim-de-semana, a verdade é que com os sogros as frases pouco fluíam, tudo muito forçado, sorrisos postiços, gestos encenados, após aquele fracassado regresso a casa, de aliança no anelar-esquerdo, os pais desejavam ardentemente outra coisa para a filha, ignoravam o prematuro anoitecer do seu coração, ele limitou-se a virar costas a tanta hipocrisia, apesar de também ela estar muito aquém dos desejos de nora dos seus pais (quem deseja uma divorciada para um filho? A cidade não era assim tão extensa…), de facto, só as crianças iluminavam as faces de todos, as luzes da sua consolação, com as duas filhas, a sua lado, sentia-se triunfal, optou por rumar às praias, sempre oferece uma distância de tranquilidade, o respirar harmoniza-se, aí chegados, ele procurou-lhe os lábios enquanto lhe percorria, suavemente, a face com um gesto de ternura, um quadro tão longínquo de: intimidades só uma ou duas vezes por mês, tudo muito mecânico, ele já nem a beijava, ela grata, também só queria retirar a sua dose de prazer, nada mais; ela acariciou-lhe a mão, embora recuasse o rosto, não se conteve e questionou-a “Trata-se de um equívoco? Queres que te leve para casa?”, enquanto se endireitava no banco, “Sim, por favor,” ligou o carro e guiou tão depressa quanto lhe foi possível, com o orgulho ferido procurou, com juras pelo meio, organizar o pensamento e redireccionar os próximos passos, o primeiro seria arranjar outro café e jamais voltar a contactá-la, até equacionava, assim que a deixasse, apagar o contacto, já os candeeiros derramavam sombras pela rua, quando a deixou à porta do prédio, para sua surpresa, uma rua agradável, construíra um quadro mais doloroso, um primeiro aviso da distância entre a sua idealização e a realidade, “Então, Adeus…,” a frase saiu-lhe assim, seca, ela permaneceu sentada, parecia esperar algo distinto, de repente, “Adeus!”, levantou-se e saiu, ficou a vê-la afastar-se, de semblante nocturno, por segundos apenas, obrigou-se a dar meia-volta para rapidamente dali sair, na segunda noite seguinte, recebe uma mensagem “Como estás? Não disseste mais nada…,” foi lesto a responder “Pensei que não quisesses… Não foi tudo um equívoco?,” coitado, estava nas mãos dela, o extenuado número de se fazer de difícil, num primeiro encontro, é quase caricatural, apenas para maquilhar a promiscuidade, pois, a cidade não era assim tão extensa, andou, lá por casa, de rosto nocturno durante dois dias, nem vestígios de um ar apatetado, sonhador, de criança com um brinquedo novo, no decorrer do jantar, ela não se conteve “Está tudo bem? Algum problema no trabalho? Andavas tão feliz…,” quando se tem uma ferida, o pior é alguém vir propositadamente lhe tocar, foi assim que interpretou as suas palavras, de uma notória intromissão, e como estava magoado, “Tudo gira à volta do trabalho?! Já não se pode simplesmente estar chateado? Olha, fica por casa dos teus paizinhos que são uns queridos…,” nem terminou a frase, a mistura de assuntos só reflectiu o seu desnorte, antes de se deitar, nessa noite, olhou-se, durante um pouco, ao espelho, nunca se conseguiu olhar por muito tempo, e questionou como colocou tanto de si numa quase estranha, por outras palavras, o que de errado havia consigo para assim se expor,  ao desligar o omnipresente rectângulo, reparou na mensagem, as reflectidas questões, frente ao espelho, rapidamente se esfumaram, o seu rosto sorria, o olhar cintilava, dedos ávidos a juntar letras para responder “Pensei que não quisesses… Não foi tudo um equívoco?,” coitado, estava nas mãos dela, no dia seguinte lá foram, de novo, em direcção às praias, a cidade não era assim tão extensa, apenas o mar como horizonte, saíram do carro, o seu orgulho, ainda ferido, não lhe permitia repetir certos passos, desceram para a areia, brincaram como crianças, ameaças de rasteiras, até ambos caírem e pela primeira vez se beijarem, ela com dissimulado pudor, coitado, estava nas mãos dela, outras saídas se sucederam, até tudo terminar, pois, no banco de trás, ela acabou por regressar ao seu habitat, por casa, uma vez mais, o ar apatetado, sonhador, de criança com um brinquedo novo, um renovado zelo com a indumentária, a minuciosa utilização do perfume, se tivera suspeitas, o seu coração gritava e a razão procurava silenciá-lo, agora só queria ver, já acreditava, a cidade não era assim tão extensa, o colega de café acabou por perceber o porquê da sua ausência, outros também a viram entrar no seu carro, por preguiça, o assunto mais fácil é sempre o outro, sem ter noção, ele tornou-se assunto do dia, nas suas costas os comentários repetiam-se quase sincronizados “Sabias que anda com uma tipa do café aqui em frente? Sim, bem mais nova que ele! E a mulher? Sei lá, isso é assunto deles… Nem comento! Uma vergonha… E as filhas, enfim… Parece que a vai esperar, todos os dias, à saída do trabalho. Estas raparigas não têm o mínimo juízo! Mas, pelos vistos, ele também não…,” tudo acabou por se precipitar, após uma insistência dele em almoçar num restaurante que muito apreciava, saíam há três semanas, da janela do escritório houve quem jurasse tê-los visto de mãos-dadas, como namorados, ela nem estava muito a fim de experimentar tal restaurante, entrava em zona desconhecida, distante de um banco-traseiro, o gerente procurou disfarçar espanto ao vê-lo, por ali, com outra mulher a seu lado, e como se lhes gritava a intimidade, ela pareceu apreciar o espaço e a refeição, ele embevecido só a olhava, chegaram a entrelaçar dedos sobre a mesa, esse gesto não passou despercebido a uma sujeita sentada duas mesas atrás, estava com um grupo considerável, quase passava despercebida, daquelas refeições que se prolongam tarde adentro, eles naturalmente saíram antes, ela aproveitou para, com a devida discrição, os fotografar no restaurante, depois a sair e, de mão-dada, caminhar até ao carro, chegou à dezena de fotos, nada verbalizou, não ia expor a irmã, levantou-se da mesa para lhe telefonar, “Estou? Preciso de falar contigo urgentemente! Quando podes?”, imediatamente percebeu do que se tratava, o seu coração gritava e a razão procurava silenciá-lo, agora só queria ver, já acreditava, a cidade não era assim tão extensa, ao ver as fotos, do homem que dormia a seu lado com outra mulher, bem mais nova, espantou-se por apenas sentir compaixão, nem vestígios de raiva, ódio, ciúme, apenas compaixão, talvez por de vinte e poucos anos, com o desgosto, passou a aparentar quarentas e…, pediu as fotografias à irmã, prontamente as recebeu, nessa noite, quando ele entrou em casa, com ar apatetado, sonhador, de criança com um brinquedo novo, ela já deitara as filhas, esperou-o na sala, em pé, só um candeeiro, emissor de luz tranquila e difusa, percebeu-lhe a expressão  antes de tudo, com uma voz tranquila “Não quero cenas, desculpas de adolescente, muito menos diálogo, vais calmamente fazer as malas e sair… O resto será tratado nos próximos dias. E rápido, por favor.”, foi ele a regressar à casa paterna, não tinha mais para onde ir, de olhar no soalho, não conseguiu construir uma frase sequer, colocou apenas uma muda de roupa numa mochila e saiu, só não lhe toleraria infidelidade sob o mesmo tecto, a cidade não era assim tão extensa, corria o risco de ser visto pela família dela, isso jamais admitiria, ela só regressou à casa paterna, para visitar, com as duas filhas, a sua lado, sentia-se triunfal, conseguiu manter a casa, os seus pais, nesse aspecto, foram providenciais, o segundo divórcio já era demasiado, a cidade não era assim tão extensa, ao menos nem tudo se perdesse, assim que soube da separação, disse-lhe adeus por mensagem, até deixou o café em frente ao trabalho dele, ao ler as poucas e mal redigidas linhas, sentiu o carácter irreversível do adeus, dolorosamente compreendeu que iluminara uma frágil vela na procura de clarear uma noite infinda que transportava consigo há muito…

segunda-feira, 21 de abril de 2025

Já esqueceste o Canto-da-Sereia? II


 

Enquanto esperava por ela, dentro do carro, ao final da tarde, levantou-se-lhe, vindo de parte incógnita, um viés da mais densa das noites onde há uns anos mergulhara, tentou rapidamente afastar aquela indesejada intromissão, por instantes, ainda reflectiu no porquê de tal reminiscência, quando, de repente, os nós dela no vidro, para destrancar a porta, devolveu-o à sua circunstância, era a segunda vez que a ia buscar à saída do trabalho, a primeira foi consequência de mais três idas, sozinho, ao café, olhares demorados, tantas frases por ali desfilam, lá procurou dar o corpo da sua voz a algumas, sempre tão aquém do ideal, o receio da voz dela não corresponder à doçura do olhar, afinal soou-lhe melodiosa, de início, tudo é sonho, estava tão perdido naquele olhar esverdeado, atencioso e doce, que nem se lembrou de ocultar a aliança no anelar-esquerdo, se reflectisse bem nesse gesto, afigurar-se-ia ridículo, a palidez da marca gritaria bem alto, e ele nunca fui muito escrupuloso no jogo de máscaras-sociais, assim sendo, avançou desvelado, às frases de circunstância iniciais, seguiram-se as habituais questões, alimento do diálogo, ela respondia pronta, sorridente e era lesta a retribuir-lhe cada questão, ele pensava há quanto não lhe colocavam questões assim (Se gostava do trabalho? Se era o seu sonho de criança? No fundo, uma estupidez, vendo bem as coisas, que criança sonha, em adulto, trabalhar num asfixiante espaço, inundado de papéis, papéis e mais papéis, com ecos, por todo o lado, de ininterruptos telefones? Pois, nenhuma, claramente… Mas ele deliciava-se com aquela atenção, permitia-lhe, de certa forma, redescobrir-se, avaliar o seu percurso, e, como horizonte, aquele olhar esverdeado, atencioso e doce, era possível melhor?), lá por casa, o seu trabalho é apenas o imperativo ordenado, nada mais, ninguém lhe pergunta se aquele era o seu sonho de criança, a verdade é que, assim que os seus olhares se demoraram pela primeira vez, ele esqueceu a aliança, como se aquele olhar esverdeado, atencioso e doce, fosse um lugar à sua espera desde sempre, a possibilidade de vivenciar uma outra existência (há coisa melhor?), nem se preocupou com a eventualidade de ela reparar, nunca o indiciou, quando lhe perguntou a hora da saída, a resposta dela foi espontânea, ele retorquiu se a poderia vir buscar, de novo, da parte dela, uma naturalidade afirmativa, como era o primeiro encontro, quis ser cauteloso e jamais levá-la a um café, a cidade também não era assim tão extensa, corria o risco de ser visto, optou por rumar às praias, sempre oferece uma distância de tranquilidade, o respirar harmoniza-se, um observador atento compreendia, com demasiada facilidade, que ele construía uma personagem à medida das suas expectativas, em verdade, ele não a ouvia, narrava uma história por si construída, trabalhava num café para ajudar a mãe desvalida, o pai abandonara inexplicavelmente o lar há demasiados anos, tal facto obrigou-a, para grande desgosto, a largar os estudos, não obstante o notório fulgor de inteligência, bem mais nova que ele, de certa maneira parece um retornar ao início da caminhada, uma nova possibilidade de corrigir passos erráticos, se, por acaso, tivesse um receptor da sua confiança, seria esta a personagem que apresentava, tão distante de uma jovem promíscua, conhecedora do fascínio que exerce sobre o sexo oposto, que muito gosta de os ver a seus pés, para o efeito joga todo o arsenal da arte feminina da sedução,  já que no restante tempo só lhe resta andar de bandeja na mão a servi-los e a ouvir rudezas, coleccionava empregos precários como aquele, a instabilidade emocional reflectia-se a cada passo, virou, muito cedo, costas aos livros, o único aspecto positivo da escola era, lá em casa, não a mandarem trabalhar, assim arrastou a coisa o máximo possível, quando atingiu a maioridade, com três reprovações no currículo, a única porta que se lhe abriu foi trabalhar, começou numa tascazita do seu bairro, tratou logo de encantar o filho do patrão, foram apanhados, pela hora do almoço, no armazém, foram descuidados com a volumetria dos gemidos, não restou alternativa, apesar da veemente oposição do filho, pagou os dias de trabalho e depois abriu-lhe a porta, o filho ameaçou seguir-lhe os passos, o pai colocou-o à-vontade, apenas sublinhou que ali teria de deixar as chaves do carro, nem hesitou, correu atrás dela, no entanto, quando o viu, durante dias, a arrastar-se, de todas as formas possíveis, pelas ruas, durante o dia, pelas digitais, durante a noite, perdeu o interesse, como um artista após a obra feita, ou um atleta após a marca alcançada, ou um assassino após o crime, e ela era uma assassina de corações, o desgraçado quase se perdia para as drogas, não fosse a pronta intervenção paterna a resgatá-lo, regressou ao trabalho na tasca e recuperou as chaves do carro, não raras vezes o pai amaldiçoou a hora em que a empregou, percebeu-lhe demasiado calor nos gestos, só nunca equacionou que o filho caísse em tão óbvia armadilha, o episódio no armazém, pela hora do almoço, só não ganhou mais ecos, pelo bairro, porque o pai era homem de palavras essenciais, não obstante a volumetria dos gemidos, mas a sua sede, de os ver a seus pés, somava episódios no bairro e não só,  quando percebeu o seu insistente olhar, a meio-caminho entre a timidez e a gula, percebeu que seria uma presa fácil, andava entediada, lá por casa, o pai, veterano condecorado das pielas, entrava e saía consoante o peso da carteira, a mãe nunca lhe negava o regresso, talvez por aí a sua sede de os ver a seus pés, reparou, de imediato, na aliança, nunca andara com um casado, apenas comprometido, seria, para ela, uma adenda ao seu currículo, sabia, também, que nunca largaria a esposa, óptimo, quando se fartasse, ele não poderia provocar muitas ondas, as rédeas estariam do seu lado, algo de que sempre se assegurava, não gostava de melodramas, limitou-se a ser a personagem que ele construíra, nada mais simples, trabalhava num café para ajudar a mãe desvalida, o pai abandonara inexplicavelmente o lar há demasiados anos, tal facto obrigou-a, para grande desgosto, a largar os estudos, não obstante o notório fulgor de inteligência, bem mais nova que ele, enterneceu-se quando, na primeira saída, a levou até à praia, o alaranjar do horizonte, era um romântico, coitado, pensou ela, vai ser uma dolorosa queda, no seu currículo já soma múltiplas saídas que não foram além do banco-traseiro, tudo isto constitui uma novidade, até a forma, antes de um primeiro beijo, de ele lhe percorrer, suavemente, a face com um gesto de ternura.


sexta-feira, 18 de abril de 2025


 

... as paixões nunca se esquecem, apenas podemos adormecê-las...

in Já esqueceste o Canto-da-Sereia?

Já esqueceste o Canto-da-Sereia?


 

Tudo começa com uma demora nos olhares, tantas frases por ali desfilam, parte-se com a certeza de que por ali muito ficou por dizer, ele não prescindia, a meio da tarde, de um café, esta necessidade agudizou-se há uns meses, descia com um colega, atravessavam a rua e entravam no café em frente, nessa dezena de minutos nunca falavam de trabalho, como se um acordo tácito, frases de circunstância e pouco mais, eram apenas colegas ávidos de sair um pouco daquele asfixiante espaço, inundado de papéis, papéis e mais papéis, ecos, por todo o lado, de ininterruptos telefones, pouco conheciam do outro, mas o suficiente que permitisse atravessar uma rua para um café, um casado há uma década, com duas filhas, desposou a mulher para esquecer uma paixão, a mulher desposou-o para deixar de ser a divorciada, era uns anitos mais velha, em verdade, uniram-se para esquecer paixões, um erro grosseiro, as paixões nunca se esquecem, apenas podemos adormecê-las, ela, muito cedo, entregou-se ao calor de tal sentir, enfrentou a família e, perante a autoridade dos homens, colocou uma aliança no anelar-esquerdo, não ousou ascender à autoridade divina, tudo se esfumou em poucos meses, regressou a casa paterna e “Quantas vezes te avisámos, minha filha?” repetia-se, pelo menos, três dezenas de vezes por dia, equitativamente dividido entre pai e mãe, de vinte e poucos anos, com o desgosto, passou a aparentar quarentas e…, olheiras, as maçãs do rosto descaídas, uma magreza e flacidez simultâneas, das piores combinações possíveis, é sempre duro compreender que só nos apaixonamos por ideias, o sujeito que lhe colocou uma aliança no anelar-esquerdo, sob a autoridade dos homens, contra a vontade da família, não regressou, durante uma semana, ao apartamento, de uma assoalhada, alugado, as irmãs contaram-lhe que fôra visto na companhia, em múltiplas ocasiões, de senhoras com generosos decotes, sempre de copo na mão, a entrar e sair de bares madrugada adentro, do trabalho ligaram, apenas por uma vez, a perguntar o porquê da sua ausência, elucidativo, ela não soube o que responder, mas intuiu, pelo tom, que tal chamada não se repetiria, um facto, pelo sétimo dia, no decorrer de uma manhã de Domingo, após ligar a uma das irmãs, com a voz entrecortada, a pedir que a viessem buscar, ela fez as malas, desceu, e aguardou no passeio, nesse entretanto ainda olhou para o seu carro ali estacionado perto, não conseguia reunir forças e guiar para longe dali, teriam de a levar, no dia seguinte rescindiu o contrato de arrendamento, com o suporte da família entrou com a papelada para, sob a autoridade dos homens, retirar a aliança do anelar-esquerdo, de vinte e poucos anos, com o desgosto, passou a aparentar quarentas e…, os pais respiraram melhor apesar de se sentirem nodoados com a aliança tão precocemente colocada no anelar-esquerdo da filha mais velha para, pouco depois, ser tão abruptamente retirada, a paixão dele mergulhou-o na mais densa das noites, chegou a ter de se socorrer de quem norteie a razão alheia, uma vez que não há medicina para o coração da alma, e como esse lhe sangrava, olharam-se como um porto.de-abrigo, eram dois seres dilacerados pelas paixões, estavam exangues, apenas procuravam a quietude de um abrigo após tão dolorosa intempérie, do colega que o acompanhava nas fugas de café pouco sabemos, apenas que vivia maritalmente com uma enfermeira, quando se questionava a razão de não haver alianças, tudo servia, até o anacronismo da instituição casamento (a quem interessa este facto? Pois, aos do costume…), tudo começa com uma demora nos olhares, tantas frases por ali desfilam, parte-se com a certeza de que por ali muito ficou por dizer, assim foi nessa tarde quando abandonaram o café, ele ficou perdido no olhar esverdeado, atencioso e doce da nova empregada, aprendera, há muito, que nunca se partilha um destino almejado, assim que saíram, após os habituais dez minutos onde nunca falavam de trabalho, como se um acordo tácito, frases de circunstância e pouco mais, sentiu um imenso desejo de regressar, até se estranhou, não sentia um calor assim desde, pois, a intempérie que o dilacerou, antes de atravessar a rua, olhou para trás, ela recolhia as chávenas da mesa onde se sentaram, assim que se ergueu, os seus olhares, pela segunda vez nessa tarde, demoraram-se,  tantas frases por ali desfilam, parte-se com a certeza de que por ali muito ficou por dizer, pelo largo vidro da montra, ficou a contemplá-la, de bandeja na mão, imóvel, num desamparo que lhe fendia o coração, nesse final de tarde, ao entrar em casa, só a imagem dela, de bandeja na mão, imóvel, num desamparo que lhe fendia ainda mais o coração, ausente para a sua circunstância familiar, respondia com monossílabos e um sorriso, apenas se queria centrar naquela imagem de bandeja na mão, imóvel, nessa noite, já deitado, olhou a mulher, a seu lado, com uma revista de vulgaridades, olhou-a com discrição e reflectiu na sua relação íntima, entre lençóis nunca houve paixão, apenas sexo, foi a sua conclusão, se há uma década ela de vinte e poucos anos, com o desgosto, passou a aparentar quarentas e…, com dois filhos, descuidou-se bastante, nesse aspecto, ele não falhava a sua corrida de fim-de-semana, a verdade é que já não se sentia muito atraído, e foi penosa a sua conclusão: entre lençóis nunca houve paixão, apenas sexo; ela há muito aí aportara, daí não se coibir dos seus docinhos ou salgadinhos ao longo do dia, quanto a corridas, já lhe bastavam as lides domésticas e as diárias para o trabalho, nesta fase, quando o olhava, a seu lado, deitado, concluíra que o coração de uma mulher só conhece uma Primavera, e a sua terminou numa manhã de Domingo, com um indesejado regresso à casa paterna, no dia seguinte, teria de regressar sozinho ao café, para compreender se, de facto, aquele olhar esverdeado, atencioso e doce, era para si, para o efeito, teria de sair, discretamente, noutra hora, assim o fez, sem nada dizer, escapuliu-se, atravessou a rua quase em corrida, e entrou, àquela hora só duas ou três mesas ocupadas, e uns quantos vultos ao balcão, ela estava de costas a tirar um café enquanto a outra empregada de volta das mesas, não lhe restou alternativa, sentou-se ao balcão e, enquanto ela de costas, a tirar um café, apreciou-lhe alonga  trança, num castanho-claro, quase louro, zelosamente entrelaçada, as formas que tanto agradam a um olhar masculino, no entanto, ele somente aguardava por aquele olhar esverdeado, atencioso e doce, onde se perdera, assim que ela se virou, em equilíbrio, com a chávena de café fumegante na mão, os seus olhares reencontraram-se, nesse instante, ele soube-se, uma vez mais, perdido…

quarta-feira, 9 de abril de 2025

Filadélfia

 


Hoje resolvi levantar a memória de uma figura que, num certo contexto, ficou conhecida pelo supracitado título (homónimo de um aclamado filme), nesta altura, estar-se-á o leitor a questionar: Porquê Filadélfia? Bom, já lá iremos… A primeira característica a ressaltar era a sua irritante voz, algures entre um boneco-de-corda e uma criancinha com mimo em demasia, para agudizar o efeito, tinha o condão de muito pouco se calar, era efectivamente simpático, nada a obstar, no entanto, aquele timbre, algures entre um boneco-de-corda e uma criancinha com mimo em demasia, assassinava a paciência de qualquer um, falava com todos, diálogos de superfície, pouco mais, embora, por vezes, tentasse dar um passito para além do circunstancial, para o efeito, elegeu a música como seu baluarte, sobretudo uma área recente – a denominada “música alternativa” – ou lá o que isso seja, creio, com sinceridade, que, por estes dias, haja nichos para tudo, de volta à personagem em apreço, há que sublinhar o seu divórcio com o trabalho, e foi litigioso, sublinhe-se, nunca o ouvi proferir tal vocábulo, ainda hoje não sei se foi logo à nascença, é uma possibilidade, quando alguém, por acaso, falava de um episódio no seu emprego, ficava em espanto, emudecido, como se, de repente, falasse num idioma estranho proveniente de longínquas paragens, o seu quotidiano cingia-se a casa, à frequência daquele contexto, e aguardar pelas sextas-feiras onde, na companhia de outro melómano, rumava para essas lojas recônditas, sobretudo na capital, onde se vendiam álbuns de “música alternativa,” era vê-lo chegar, uma dezena de minutos antes da hora combinada, para povoar todo o espaço em redor com aquele timbre, algures entre um boneco-de-corda e uma criancinha com mimo em demasia, assassinava a paciência de qualquer um, como gostava de discorrer sobre álbuns e cantores incógnitos para a maioria, muitas vezes, no regresso, lá vinha com alguns debaixo do braço, com ar de júbilo, pois, incógnitos para a maioria, em algum momento teria de se sentir um iluminado, embora luz não lhe faltasse, pelo contrário, essa era uma das suas mais notáveis características, em verdade, independentemente da hora ou da circunstância, parecia sempre saído de uma intensa sessão de sauna, as luzes em volta reflectiam-se-lhe no rosto, o cabelo similar a um anúncio de gel, talvez fosse um homem de calores, é possível, a seu lado, omnipresente, a figura materna, dessas que acha ser o farol do mundo, apesar de nem a pirilampo chegar, não só pela altura como pela consistência das frases emitidas, o semblante registava a aspereza de uma inextinguível dívida por cobrar do mundo, as coisas são, quase sempre, muito simples, a partir de certa idade, as mulheres que registam um semblante áspero de uma inextinguível dívida por cobrar do mundo são as divorciadas e mal resolvidas, denotava-se-lhe pelo penteado que a sua inspiração estava além-Atlântico, numa jornalista cuja permanente companhia era um papagaio-verde, de facto o cabelo transparecia uma aura falante e alada, confesso que, não raras vezes, dei por mim a olhar para os seus ombritos, na expectativa de por ali vislumbrar um papagaio-verde, como era estranho conciliar estas duas personagens, à superfície tão distintas, mas com tão singulares laços como: mãe e filho: ela com um semblante áspero, de uma inextinguível dívida por cobrar do mundo, a achar-se um farol da razão, apesar de nem a pirilampo chegar, ele parecia sempre saído de uma intensa sessão de sauna, as luzes em volta reflectiam-se-lhe no rosto, o cabelo  similar a um anúncio de gel, com a sua irritante voz, algures entre um boneco-de-corda e uma criancinha com mimo em demasia, para agudizar o efeito, tinha o condão de muito pouco se calar, soube-se mais tarde, em certos contextos tudo acaba por emergir, que, além de ter uma companheira, já tinha um descendente, cioso da sua privacidade, compreensível, já brilhava em demasia, certa tarde, de uma sexta-feira, foi visto com a sua companheira, antes de embarcar na odisseia por lojas recônditas, sobretudo da capital, onde se vendiam álbuns de “música alternativa,” houve quem jurasse que a sua companheira parecia a última contratação de um conhecido clube de futebol, enfim, pura maledicência, só podia ser, talvez alguém que se sentisse ofuscado com tanto brilho e almejasse ter um cabelo saído de um anúncio-televisivo de gel.


domingo, 6 de abril de 2025

Consolação

 


Antes da chave na porta, já lhe ouvira os saltos no patamar, a porta a abrir e fechar-se, o elevador, num lamento mecânico, a caminho de outras altitudes, a carteira pousada à pressa, o prolongado gemido da porta-da-despensa, por fim, uma breve luta para abrir algo, encosta-se à bancada e suspira, de onde estava, no sofá, frente à televisão, visualizava, no pensar, cada passo da filha, ia para dois meses desta cadência, acabava, minutos depois, por lhe aparecer, cumprimentos, frases de circunstância, tudo muito pela superfície, bastavam os olhares para se compreender a desolação pressentida, filhos e pais, a partir de certa idade, simplesmente não devem coabitar, antagónico à ordem natural do existir, as circunstâncias levaram-na a desgraçadamente regressar ao ninho materno (se assim se pode designar), apesar das vincadas diferenças entre elas, quando dali partira, há cerca de quinze anos, afirmara “Só aqui regresso, para vos visitar…”, o pai ainda presente, em verdade, a frase era-lhe dirigida, entre elas sempre vincadas diferenças, a vida e o seu enlear levaram-na a capitular quantos dos seus valores? Contra os desígnios maternos, juntou-se a um sujeito mais velho, divorciado, pai de dois filhos, a mãe incessantemente lhe repetia (“Casar rima com alguma segurança, juntar é de uma total insegurança”), ela prontamente rebatia com conceitos oníricos de Felicidade e Realização, a mãe respondia (“Casar rima com alguma segurança, juntar é de uma total insegurança”), passados oito meses, anuncia aos pais a sua gravidez, vendia viagens na agência do sujeito, aí se conheceram, embora detestasse fazer as malas, aqui se vislumbrava uma primeira fissura que não passou despercebida ao atento olhar materno, ele sempre prontinho para o próximo destino, assim que soube da gravidez aparentou entusiasmo, a paternidade não lhe era estranha, não é possível, a quem está de fora, percepcionar a força e magia dos invisíveis laços que levam um homem e uma mulher a caminhar na mesma direcção, oito semanas depois de anunciar aos pais a sua gravidez, certo final de tarde, a olhar os sapatos, num murmúrio, comunica-lhes que não vingou, o médico, por precaução, desaconselhou novas tentativas, o problema era dela, estrutural, o pai abraçou-a prontamente, a mãe questionava a razão de a filha ali estar sozinha a dar-lhes tal notícia, pensou em questioná-la onde estava o sujeito, a emoção da cena fê-la silenciar-se, há muito não via pai e filha tão irmanados na dor, sabia do seu sonho de ser avô, agora, nesse final de tarde, esfumado, não conseguiu levantar-se e abraçar a filha, o marido já o fizera por si, permaneceu sentada e emitiu frases de ocasião, o facto de a filha ali estar só, a dar-lhes tal notícia, apenas lhe causava repulsa, em verdade, nem conseguia fitá-la,  não era também seu objectivo ser avó, tal como mãe, daí só ter aceitado o facto por uma vez, tudo fez para que não se repetisse – quando lhe puseram aquela pequena criatura nos braços, enrugada, ruborescida, que se contorcia como um idoso, em busca de uma posição que lhe pacificasse ossos e articulações, olhou-a como uma estranha, ainda procurou, em si, de todas as formas possíveis, ligar-se àquele diminuto ser que segurava, um espelho, algo seu por ali derramado, nada, essa foi a verdade, nada, por si ecoaram frases ocas repetida e exaustivamente propaladas (“É um momento único! Inexplicável! Tornamo-nos logo outras… A vida muda naquele segundo… Deixamos de importar, só o bebé… Até o nosso respirar muda… Nada de iguala àquele instante em que nos depositam o bebé nos braços… Vale por uma vida! Não se encontram palavras à altura de tal sentir…”), ela ainda procurou, de todas as formas possíveis, ligar-se àquele diminuto ser que segurava, um espelho, algo seu por ali derramado, nada, essa foi a verdade, nada –, sentiu padecer de um qualquer inominável mal, foi dos momentos de maior solidão da sua existência, talvez o maior, naquela madrugada, com a bebé nos braços, olhá-la e nem vislumbres de um sentir cantado desde tempos imemoriais, um sentir que jamais ousou comunicar, pois, sentiu padecer de um qualquer inominável mal, extenuada, dorida, sapiente de que a dor maior jamais poderia verbalizar, levaria dali uma estranha, nos braços, para casa, uma noite de hospital é a eternidade, quando a luz se apagou, ela só se recorda de virar costas, ao berço plástico ao lado da cama, e rezar pela misericórdia de um sono que a levasse para bem longe dali, apesar de ela jamais verbalizar o seu sentir, com o tempo, a filha bebeu-o, o olhar na direcção da mãe apenas reflectiu esse fel, quando o pai se aproximava, o rosto suavizava-se e o olhar em luz, assim decorreram os anos entre eles, vendo bem as coisas, sob a luz do tempo, a verdade é que o pai não insistiu muito em dialogar por outro filho, é possível que, nos primeiros meses, em múltiplas ocasiões, a visse de costas voltadas para o berço a seu lado, há coisas, na vida, que sabemos, no entanto, incompreensivelmente não queremos acreditar, por conseguinte, atiramos para uma indistinta zona de nós, algures entre indizível e o esquecimento, para continuarmos a respirar com quem vive sob o mesmo tecto, as circunstâncias levaram-na a desgraçadamente regressar ao ninho materno (se assim se pode designar), apesar das vincadas diferenças entre elas, quando dali partira, há cerca de quinze anos, afirmara “Só aqui regresso, para vos visitar…”, o olhar da mãe gritava-lhe essa frase, sentia-o de onde estava, encostada ao balcão da cozinha, de olhos fechados, a saborear, com lentidão, cada quadrado do chocolate que há pouco abrira, precisava daquele doce para equilibrar o tanto fel que a habitava.


 

sexta-feira, 4 de abril de 2025

Que ninguém diga que está bem

 


Aquela frase (Veja lá se cuida de si, homem), hoje, diante de mim, de certa forma, como se tivesse regressado, com um propósito, talvez para me relembrar que, pois, talvez por aí, assim que a ouvi, virei-me, com a esperança de um rosto, embora soubesse que o destinatário do - Veja lá se cuida de si, homem – fosse outro… Não se pode dizer que não gostasse da minha vida, nada disso, casada, dois filhos, ainda por cima um casalinho, ele mais velho três anos, uma casa agradável, nada de luxos, é verdade, mas tinha todas as comodidades, a única coisa que me incomodava um pouco, não assim tão pouco, já que estamos com esta mania das verdades, era aquela sua apatia face a tudo, e sempre com o cigarro, o que me irritava aquele cigarro, apesar de também fumar, e há tanto que o faço, mas nele, não sei porquê, irritava-me, parecia que lhe acentuava aquela apatia, trabalhava como engenheiro numa construtora, era o primeiro a sair de casa, já de cigarro na boca, e parecia-me, não sei se era só uma vaga impressão, que falava cada vez menos, ia para a estação a pé, com o tempo parecia que se divorciara do carro, que para ali ficava a remoer desamparos e costas voltadas, o miúdo (um filho nunca cresce para os pais) também caminhava pelas engenharias, ela ainda indecisa no términus do liceu, eu apanhava diariamente boleia de um casal vizinho para a repartição pública onde trabalhava há quase década e meia, ficava-lhes a meio do seu também diário trajecto, e como havia quotidianamente um recorrente tema de conversa, mas é curioso, sempre a apresentei a terceiros como minha vizinha, ou pelo nome, claro, jamais usei o epíteto de amiga, ela também usava o mesmo diapasão, são as tais zonas de silêncio, onde o verbo se torna uma obscenidade, regressava de comboio, mas nunca por ali encontrei um cigarro a acentuar apatias, depois de fechar a porta de casa, às vezes, ainda a mulher-a-dias por ali, aproveitava para lhe dar indicações para o dia seguinte, bem sei que, entre os vizinhos, nesta altura, houvesse invejas pelo facto de serem outras mãos a cuidar da limpeza do que é nosso, mas não me ralava nada, chegada do trabalho, eu queria era sentar-me na esplanada do café em frente, a folhear as revistas da moda, era disso que eu mais gostava, dava por mim, não raras vezes, durante o dia, a suspirar por este momento, na esplanada do café em frente, a folhear as revistas da moda, tinha a maior parte das vezes como companhia a vizinha que me dava boleia de manhã, sempre a apresentei a terceiros como minha vizinha, ou pelo nome, claro, jamais usei o epíteto de amiga, ela também usava o mesmo diapasão, são as tais zonas de silêncio, onde o verbo se torna uma obscenidade, percebia-se-lhe uma latente fuga da ruralidade, nos gestos, palavras, vestuário, vaticinava-lhe sucesso, no entanto, ainda não terminara, gostava de conversar com ela, não obstante um par de anos mais velha, ouvia-me com um fascínio reverencial, pois, ainda a fuga da ruralidade, o facto de o marido ser vendedor de artigos de construção, só lhe atrasava os passos da fuga, sempre que se referia ao meu era o senhor engenheiro, ria-me interiormente, aquela sua apatia face a tudo, e sempre com o cigarro, o que me irritava aquele cigarro, apesar de também fumar, e há tanto que o faço, mas nele, não sei porquê, irritava-me, parecia que lhe acentuava aquela apatia, confesso que gostava daquela atenção desmedida, do fascínio reverencial, há tanto que ninguém segue assim as minhas palavras, o senhor engenheiro numa apatia crescente, consagrado ao fumo daquele infindável cigarro que tanto me irrita, o miúdo (um filho nunca cresce para os pais) às voltas com a calculadora e com a namorada, a miúda (uma filha também nunca cresce para os pais, ou talvez o faça demasiado depressa) sempre a falar da próxima noite de Sábado, com um sublimado pedido de saída, ou de penteados e mexericos com as amigas, não me lembro da última vez em que, algum deles, se sentou diante de mim, na esplanada do café em frente, por mais que um minuto, confesso que me dava imenso jeito a boleia, todos os dias, de manhã, ficava-lhes a meio do seu também diário trajecto, permitia-me sair uma hora depois de casa, e poupava-me à infindável sucessão de encontrões das viagens matinais de comboio, para retribuir com algo, sentia-me na obrigação de lhe ensinar a melhor direcção na sua fuga da ruralidade, e como eu gostava daquela atenção desmedida, do fascínio reverencial, às minhas palavras, ela só tinha um filho, teria aproximadamente a idade do nosso, a certa altura, falou-se no bairro das companhias, ela jamais comentou alguma coisa, nem nas boleias matinais, nem nos cafés vespertinos, também nunca lhes denotei algo de diferente, nem nos gestos, nem nas vozes, ao contrário do senhor engenheiro, o marido dela coloria as palavras de emoção e graça, quantas vezes, nas boleias matinais, não dei por mim em gargalhadas, tão distinto da austeridade nocturna da nossa casa, apesar de termos uma das primeiras televisões a cores do bairro, ele com o infindável cigarro e a galopante apatia, certa manhã, a boleia atrasou-se, parece que, durante a noite, a polícia os visitou, confirmou-se que o filho com muito más companhias, o bairro expressou a sua desaprovação, felizmente, o meu menino quase a suceder ao pai como senhor engenheiro, o tempo lá continuou o seu caminho de aparência invisível, consegui uma repartição mais próxima de casa, já não precisei de mais boleias, entretanto, abriu um café com uma esplanada bem mais solarenga, optei por essa, e, em verdade, parecia mal que a mulher do senhor engenheiro apanhasse boleia daquele casal com um filho que andava com tão más companhias, depois dessa visita nocturna das autoridades, talvez por vergonha, soube que mudaram de casa, perdi-lhes o rasto, o tempo lá continuou o seu caminho de aparência invisível, foi mais ou menos quando pus os papéis para a reforma, que um amigo nosso se sai com esta Veja lá se cuida de si, homem, a partir daqui, tudo se traduziu numa queda, a magreza, uma crescente palidez, médico, exames, outros médicos, uma frase que tanto me cansou (Tem de largar o cigarro já!), mais exames, mais médicos, a magreza continuava a ganhar terreno, tal como a palidez, o hospital, além dos filhos, a visitá-lo, somente eu e o meu irmão, nem um colega de trabalho, nem um vizinho, nas horas de visita, o omnipresente ponteiro do relógio de parede a relembrar a nossa insuficiência, como se cada segundo fosse um passo que o distanciasse de nós, por vezes, ele na súplica por um cigarro, nesses momentos, quem me dera saber o que fazer, logo eu, que fui ouvida com uma atenção desmedida e um fascínio reverencial, certa tarde, já sabíamos que ele perdera a corrida para o mal que o habitava, era uma questão de dias, informara-nos o médico, numa  indiferença de talhante, saberia ele que o meu marido era um senhor engenheiro? Deambulava eu, pelos corredores do hospital, surda para o que me rodeava, a arrastar uma dor que me puxava para a terra, quando a vi, ao fundo, veio ao meu encontro, enquanto se aproximava, não consegui reprimir um sorriso, afinal, nesta vida, há corridas que se vencem…

terça-feira, 1 de abril de 2025

 


... aprendera há muito que as feridas do corpo revelam a geografia do existir, as feridas da alma espelham a geografia do sentir...

in É isto...

domingo, 30 de março de 2025

É isto…


 

“Não te esqueças: o adjectivo que mais temos de repetir é: Espectacular!”, “Mas para quê? Tu nem gostaste daquilo…,” “Não interessa! Têm de ficar com a ideia de que tivemos umas férias de sonho… Isso é o mais importante! Lembra-te de que, quando cheira a desgraça, todos acorrem como hienas atrás do sangue!,” “Já sabes que não sou bom a inventar… E tu gostaste ainda menos do que eu!”, “E o que interessa? Nada! Se souberem disso, até rejubilam, acredita… Ainda estou para descobrir o porquê daquele maldito tempo! Para mim foi, sem dúvida, inveja! E de alguma daquelas nojentas das minhas colegas… Só pode! Nunca vi! Dois dias com um sol radioso, os outros cinco piores que Dezembro….,” “Começaste logo, mal chegaste, a publicar fotos e fotos…,” “Vens com essa conversa, porquê? Tu nem acreditas nessas coisas de… És sempre o primeiro a rebater essas teorias.,” “Verdade, no entanto, foi tudo muito estranho, mau demais… Lembras-te quando chegámos? O mar num verde-esmeralda, quente, a praia quase deserta, o mundo parecia ceder aos nossos desejos…,” “Claro que me lembro! A foto que tiraste do avião… Acredita, se não fossem as fotos, duvidaria de ter visto por ali o sol! Em verdade, duvidaria de tudo! Já tive pesadelos com aquilo, acreditas? A chuva copiosa e nós enfiados no quarto! Já nem falo da fortuna que gastámos para, no fim de contas, ali experienciar o Inferno!,” “E nem íamos com expectativas assim tão altas.,” “Mesmo, foi o contexto da altura a ditar aquele destino. No primeiro dia, chegámos, largámos as malas e corremos logo para a praia…,” “Eu todo orgulhoso pela minha escolha – apesar de, a montante, estar o contexto da altura… Depois veio o suplício!,” um casal, em lua-de-mel, durante cinco dias não sair do quarto é salutar, bem diferente é um casal, com mais de duas décadas de casamento, ser quase confinado a esse espaço, por chover copiosamente num destino somente de praia, nada mais havia para ver, a hora das refeições acabou por ser o único momento lúdico, o audível jocoso rir da vida, um ano a suspirar por sol, mar e costas voltadas para o relógio, e, chegada essa circunstância, a hora das refeições acabou por ser o único momento lúdico, o audível jocoso rir da vida, no resto do tempo deambularam pelo hotel, certa tarde foram até à piscina-interna, embora, mal entraram no espaço, fossem invadidos pelo cheiro a cloro, a humidade tão típica desse cenário relembrou-lhes Inverno, era nessa altura que ansiavam por piscinas-internas,  jamais em pleno Verão, numa ilha onde nada mais havia para ver, um destino somente de praia, instalou-se-lhes um dilacerante paradoxo, como se a vida reunisse toda a ironia possível e lhes despejasse em cima, ali estavam eles, num rectângulo cheio de água, sob uma luz-artificial, a olhar, pelas rasgadas janelas, o areal chovido, onde, aqui e ali, caminhavam gaivotas chorosas por lhes terem interditado os céus, não conseguiram ali estar mais de trinta minutos, pois, não era Inverno, e se a vida agora lhes despejava em cima toda a ironia possível, antes já lhes despejara demasiado fel, entre um casal não é costume haver muitos gestos simultâneos, o virar costas às rasgadas janelas voltadas para o areal chovido, onde, aqui e ali, caminhavam gaivotas chorosas por lhes terem interditado os céus, sair das águas artificialmente tépidas, os passos até às espreguiçadeiras, pegar nos roupões para se cobrirem e sair, constituiu uma dessas singularidades, nada disseram, mas uma certeza nascia-lhes, se sobrevivessem àquela provação, nada os poderia apartar, de certa forma as grandes tragédias do existir solidificam as relações, são exactamente as pequenas adversidades a esboroar a outrora mais bela união, e, no horizonte da existência, dois dias de sol e cinco de chuva, numas férias, são, sem dúvida, uma singela contrariedade, se lhes perguntassem, hoje, como suportaram aqueles cinco dias, não teriam uma resposta, divagariam, como é habitual quando não se quer revisitar o ontem, a verdade é que foi a esperança – de sol na manhã seguinte – a mantê-los unidos e expectantes, se todos os casais, após uma singela contrariedade, aprendessem este facto, não haveria tantos filhos a olhar estranhos na hora das refeições, de forma imperceptível, ele intuiu o seu desejo de materializar sol na manhã seguinte ao proclamar “Não te esqueças: o adjectivo que mais temos de repetir é: Espectacular!”, sim, ela estava certa, aprendera há muito que as feridas do corpo revelam a geografia do existir, as feridas da alma espelham a geografia do sentir, poucos conseguem observar a ânsia de sol, na manhã seguinte, de cada alma, “Tens toda a razão: como há pouco disseste: Têm de ficar com a ideia de que tivemos umas férias de sonho (…) quando cheira a desgraça, todos acorrem como hienas atrás do sangue!

sexta-feira, 28 de março de 2025

Já não há matinés

 


Ainda há muita coisa desarrumada em mim, apesar de, à superfície, as coisas parecerem normais, agora que ela voltou, após uma vida, foi o que me pareceu, duas décadas, mas, para mim, soube-me a uma vida, pela compreensão da dor, se é que tal é possível compreender, porém, onde, de facto, tudo começou? Vivíamos praticamente juntos, por outras palavras, partilhávamos leitos em casa dos pais de ambos, já trabalhávamos há algum tempo, não havia fim-de-semana em que o tema do casamento não fosse abordado, um pouco como aqueles objectos que repousam numa prateleira, em preces de discrição, mas logo uma mão demasiado inconveniente lhes pega numa ânsia desassossegada, assim se me afigurava a temática do casamento, de certa forma, parecia que queríamos prolongar a doçura irresponsável do namoro, apesar do apelo da idade ser de leito partilhado num só lar, de preferência pago do nosso bolso, pensamentos em berços e comunhões, no entanto, persistíamos naquela doçura irresponsável, olhava-a, por vezes, numa sempre necessária distância, só assim se deve olhar para compreender, e tantas questões se sucediam por mim, mas uma era omnipresente (O que é amar?), respondia-me de imediato, e logo corria para longe de tais dúvidas angustiantes, ninguém, antes de mim, amou de tal forma, e essa certeza pétrea era-me suficiente, contudo, a vida ensina-nos que só compreendemos a corrente da margem, e, nessa altura, eu deixava-me arrastar na doçura irresponsável do namoro, não vi os primeiros sinais de enfado que ela exteriorizava, nas tardes de Sábado, quando me perguntava Não queres mesmo ir a lado nenhum? Ainda insistia Está um dia tão bonito… Eu a querer ficar em casa, deitado, não me apetecia ver ninguém, ela, ainda, num último esforço Anda! Vamos dar uma volta. Não me apetece nada enfiar-me num quarto da casa dos teus pais. Não temos a mínima privacidade. E já não somos nenhuns miúdos! Dissera tudo, se eu soubesse ouvir, mas não, quis ficar, nesse Sábado, de tarde, tal como em muitos passados, fechado em casa, deitado, com ela a meu lado, muitas vezes só víamos televisão, afinal, vivíamos praticamente juntos, e eu achava que tudo tão certo, seguro, já nada fora do seu lugar, Domingo viria, ela, de novo, Anda! Vamos dar uma volta. Não me apetece nada enfiar-me num quarto da casa dos teus pais. Não temos a mínima privacidade. E já não somos nenhuns miúdos! Mas não me apetecia sair, cansava-me ver sempre as mesmas coisas, se uma semana a correr para o emprego, depois a correr na sofreguidão do regresso a casa, para quê, naqueles dois dias, de sabor a tão pouco, sair? Contentava-me com ela ali, a meu lado, muitas vezes só víamos televisão, afinal, vivíamos praticamente juntos, e eu achava que tudo tão certo, seguro, já nada fora do seu lugar, por norma, partia dela a iniciativa de, desde o início, a timidez sempre esteve ao leme do que eu sou, em certa medida, compreendo o porquê daquele desaguar, no meu leito, há uns anos, afinal, só procura uma baía quem se cansou de mares encapelados, houve vozes ansiosas por dar corpo a histórias, enfim, o habitual do circo humano, não liguei, até me falaram de gravidezes que capitularam com a meta à vista, talvez pela dúvida da fonte, pois, mas nunca me interessei por biografias, só me interessava ela ali, a meu lado, muitas vezes só víamos televisão, as semanas tornavam-se meses, que, por sua vez, originavam trimestres, o tempo lá ia no seu passo, ora de idoso, ora de menino, consoante o nosso olhar, até que, numa sexta-feira, o telefone, ela Amanhã não posso ir aí ter. Vem cá uma prima minha que não conheces… Não, não vale a pena… Deixa… Tenho de lhe mostrar Lisboa. Ias-te aborrecer de morte. Não, não vale a pena… Fica sossegado, afinal, amanhã é Sábado, e tu gostas de ficar com a tua televisão… Por isso, deixa-te estar e não te preocupes… Quando chegar a casa, ligo-te, não lhe conhecia primos, muito menos fora de Lisboa, percebia-se-lhe uma pressa na entoação, como o viajante que receia perder o embarque, algures uma voz sussurrava-me que ela se preparava para zarpar rumo a mar-alto, procurei logo silenciá-la, mas insistia, não a consegui calar, apesar da televisão, da tarde de Sábado, eu deitado, mas ela não a meu lado, nessa noite, não sei se chegou a casa, apenas percebi que o meu telefone permaneceu no silêncio crescente da minha angústia, Domingo, assim que a hora me pareceu apropriada, quando as casas dos vizinhos já exalavam torradas e café, eu com o auscultador encostado à orelha, enquanto um som arrastado me dizia que um telefone por mim desejado se fazia anunciar, até que o som arrastado se precipitou na intermitência por ninguém ter acorrido, insisti, insisti, nem pensar em desistir, insisti de novo, tudo se precipitava numa exasperante intermitência, resolvi ir bater-lhe à porta, assim foi, na rua percebi o carro dos pais, apesar da campainha, vezes repetidas, a porta do prédio numa fria indiferença metálica, regressei a casa, essa tarde de Domingo, apesar do sol, pareceu-me uma imensa noite, fechei-me no quarto, assim fiquei, mas a televisão desligada, agarrei-me, para os dias seguintes, a uma ruína de orgulho, se assim se pode dizer, dias depois, tão longos para o sentir que me habitava, pouco antes do jantar, o telefone, não consegui disfarçar a sofreguidão, corri de imediato ao seu encontro, meus pais entreolharam-se no silêncio da compreensão, era ela, desta feita, numa entoação demasiado pausada, falava-me de dúvidas, de incertezas, do cansaço pelos Sábados, de tarde, fechados em casa, cortei a conversa, ainda hoje me surpreendo pelo arrojo Conheceste alguém? Afinal já conhecia, e eu também, um amigo do irmão, advogado, parece que gostava de viajar, não, Sábados de tarde sempre fora, de um lado para o outro, desconhecia por inteiro a grelha televisiva, cama só de noite e parece que dormia pouco, pois, e há muito que tinha a sua casa, de novo, agarrei-me a uma ruína de orgulho Tens a certeza? A resposta dela, Sim, soube-me a mil golpes, uma forma de inocência acabara de se me morrer, num último fôlego, disse-lhe Felicidades…

Quantos rostos saem e entram nas nossas vidas? Os que partem na derradeira viagem, permanecem em nós, regra geral, consoante o legado da memória, com uma dignidade intocável, os outros, os rostos da circunstância, enfim, acabam por sucumbir ao momento, outros se sucedem neste incessante dia após dia apelidado de existência, e ainda há os que nos ferem de vazio, os tais que nos retiram, friamente, uma forma de ver o mundo, o rosto dela demorou vinte e dois anos a reentrar na minha vida…

Entrou, de bicicleta na mão, na minha loja de reparações de, isso mesmo, bicicletas, os Sábados, de tarde, fechado em casa, a ver televisão, deixaram de ter um sentido, ainda hoje não sei se foi de propósito, creio que sim, achei curioso a familiaridade com que me tratou, parecia retomar um diálogo algures interrompido, confesso que me soube bem, enquanto ela falava, parecia que uma parte de mim se reconstruía, sem me aperceber, caminhávamos passeio fora, apesar dos seus três filhos, do ainda marido advogado, que já não viaja assim tanto, parece que semeou demasiadas dívidas, às quais somou um desfalque, percebo agora o porquê da bicicleta, de uma certa resignação pela face, antes de se despedir, olhou-me e disse Amanhã é Sábado, não é? 

terça-feira, 25 de março de 2025

Lugar d`Além


 

“É ali que vamos ser felizes!”, a frase saiu-lhe simultânea ao pensar, “É ali que vamos ser felizes!”, o rosto em esperança, ouviu-a com indulgência, felicidade não rima com existir, “Anda, segue a seta,” perplexo olhou a placa que indicava “Lugar d´Além,” de início afigurou-se-lhe algo inquietante, porém, a resoluta expressão dela fê-lo colocar o pisca e seguir nessa direcção, tudo, neste caminhar, tem um antes, o facto de ali se encontrarem começou há uns bons anos, poucos meses depois de firmarem votos de amor e fidelidade sobre terreno sagrado e sob a cruz-divina, símbolos de compromisso nos anelares-esquerdos, foram morar num pequenito apartamento nos arrabaldes, sala que era quarto, quarto que servia de sala, uma acanhada casita-de-banho e, o que se denomina de cozinha, um corredor com uns eletrodomésticos, ao fundo, uma janelita, com um estendal, que dava para o prédio em frente, desconheciam a causa, ou talvez não, mas a cada dia parecia mais próximo, tal o crescendo de sombras que pareciam engoli-los, provinham de humildes famílias do interior, ela conseguira trabalho ao balcão de um entreposto de alegrias ou tristezas veladas por um envelope, ele, de momento, zelava para que roubassem o menos possível de um super-mercado, por estes dias é o que se requer – zelar para que se roube o menos possível –, quando certos factos se tornam quotidianos, é porque nos perdemos de vez, a ânsia de cidade e litoral fê-los abraçar o que se lhes afigurou de oportunidades, com a escolaridade obrigatória cumprida, foi o possível, o horizonte de ambos salários possibilitou apenas um pequenito apartamento nos arrabaldes – de início, afigurou-se-lhes um palácio, o calor do êxtase acelera a pulsação embora turve o discernimento –, o restante era meticulosamente calculado para que a mesa não ficasse vazia nas imperativas horas das refeições, a realidade acaba sempre por encontrar uma porta ou janela por onde irromper para fatalmente golpear a paixão, demora, no máximo, quatro meses, a fatal hemorragia, após a sua extinção, ou se levanta o amor ou surge a indiferença, para eles, felizmente, deu-se o primeiro caso, no entanto, com a morte da paixão, o contexto circundante tornou-se-lhes nítido, demasiado longínquo de palácios ou castelos, apenas um pequenito apartamento nos arrabaldes, sala que era quarto, quarto que servia de sala, uma acanhada casita-de-banho e, o que se denomina de cozinha, um corredor com uns eletrodomésticos, ao fundo, uma janelita, com um estendal, que dava para o prédio em frente, desconheciam a causa, ou talvez não, mas a cada dia parecia mais próximo, todas as noites o telefone de um deles tocava, do interior ansiavam por notícias suas, a principal se a união, sobre terreno sagrado e sob a cruz-divina, já dera frutos, as desculpas nunca acompanham a passada do tempo, são quase sempre de curta-validade, olhavam à sua volta e, por ali, não havia espaço para um berço e demais utensílios, a circunstância dela, no entreposto de alegrias ou tristezas veladas por um envelope, não lhe permitia, por enquanto, deixar o balcão, durante uns meses, para apresentar o mundo a um filho, ele ainda menos, qualquer abandono do posto-de-trabalho só potencia o acto de roubar, houve vezes em que o telefone se limitou a tocar, tocar, e tocar, ninguém calou aquele entoar impessoal e tão vulgar, indiciador da marca do aparelho e não do seu detentor, como as coisas têm mudado sob o céu,  a insistência por um fruto da sua união começava a inquietá-los, não queriam partilhar a agrura do prédio em frente, a cada dia, parecer mais próximo, se o fizessem, sabiam de antemão a ladainha que se levantava do outro lado “Tanto vos avisámos para não saírem daqui! Porquê essa fixação com a capital? Porquê? Vivem em prateleiras e nem o vizinho da frente conhecem! Aqui, ao menos, todos nos conhecemos, trabalho não falta… E com muita dignidade! O ambiente para as crianças, meu Deus, nada que ver com a cidade… Podem brincar à-vontade sem quaisquer riscos. Não há o caos do trânsito – filas e filas que desesperadamente se arrastam a caminho do trabalho, no regresso o mesmo suplício, apenas muda o sentido –, a poluição que apenas subtrai tempo de vida, a barulheira infernal de carros, buzinadelas, enfim… E o apoio que aqui teriam de nós?! Há coisa mais fundamental do que ter a família por perto??? Sinceramente…”, há quem nasça estranho para a sua circunstância, cada um deles cumpriu com este desígnio, eles não partiram da ruralidade, em verdade, eles fugiram, a monotonia daquele viver, compassada por um silêncio que retalhava a alma, quase os levou à soleira da loucura, chegaram a sentir-lhe o odor, pois, há quem nasça estranho para a sua circunstância, cada um deles cumpriu com este desígnio, foi num passeio de fim-de-semana, numa povoação próxima, que ela se deteve numa placa a indicar “Lugar d´Além,” de mão no ventre murmurou-lhe “É ali que vamos ser felizes!”

sexta-feira, 21 de março de 2025

Felizes e ocupados

 


Hoje percebo que o nosso melhor juiz é sempre o nosso eu passado, porque só ele pode julgar se nos desviámos, ou não, muito do caminho, àquela hora, de café e bolachinhas de manteiga, entro na pastelaria do costume, felizmente, a mesa de sempre livre, encostada à janela grande, vidro de alto a baixo, nunca gostei de me sentir fechada, a minha amiga ainda não chegara, sento-me, logo a empregada (Vai ser o costume?), anuí com um sorriso, não sei porquê, mas acho-a um pouco mais arrogante, talvez seja impressão minha, pode apenas sentir-se mais segura de si, desde que namora com o pasteleiro que, por seu turno, adquiriu parte da sociedade, não muito significativa, em verdade, porém, já não é só o pasteleiro, tornou-se, de um dia para o outro, um pasteleiro percentual, pousa, com a deselegância habitual, talvez fruto daquelas mãos de palmas arredondadas e dedos curtos, o café secundado pelo pires com as três bolachinhas de manteiga diárias, neste momento, quase todas as mesas ocupadas, a maioria com idosas que põem novelas em dia, da televisão e do bairro, felizmente aqui e ali um oásis daquele cinzentismo que pontifica na maioria das cabeças, sinal de um amanhã, estudantes regressados da escola, numa mesa, próxima da entrada, duas raparigas e um rapaz curvam-se para o rectângulo do hoje num mutismo abnegado, nem se olham, o único sinal de vida advém dos polegares que, volta e meia, se mobilizam, de resto, persistem naquela deselegante forma de se sentar, como se indiciasse uma contrariedade nascida antes de serem, talvez se tratasse de um inominável arquétipo oriundo de uma paisagem só por eles olhada, nisto, sem me aperceber, a minha amiga diante de mim, percebo-lhe, no rosto, aquele traço que deseja verbalizar uma dor, mas que simultaneamente, por pudor talvez, aguarde um gesto de incentivo, não esperou muito, num qualquer canto de mim também ansiava que se povoassem silêncios, de certa forma, queria partir para longe daquela janela grande, vidro de alto a baixo, nunca gostei de me sentir fechada, daquele cinzentismo que pontifica na maioria das cabeças, do curvar para o rectângulo do hoje num mutismo abnegado, nem se olham, o único sinal de vida advém dos polegares que, volta e meia, se mobilizam, senta-se com o estrépito habitual, logo os silêncios a povoarem-se Nem imaginas o que me aconteceu! Não é que… Lembras-te daquela carteira que namorei semanas a fio? Sim, essa mesma, agora, com os saldos, desceu quarenta por cento, enfim, um preço suportável, bem sei que ainda fica sessenta e cinco euros, mas que fazer? Apaixonei-me e pronto! Fui à loja, saco do visa, e nada! Não é que o bandalho do meu ex mandou cancelar-me o cartão?! Liguei-lhe de imediato a pedir justificações, e, claro, acabei a insultá-lo de tudo… Já viste uma coisa destas?! Vê lá tu, teve a audácia de me chamar inútil! E, ainda, me mandou trabalhar… Sem comentários! Olha aqui, ao menos tirei esta foto com a carteira, pu-la logo aqui no “face”, estás a ver? Está gira, não achas? Olha logo o comentário (“Quem pode, pode…) daquela invejosa, sim, essa mesma, mal ela sabe… Mas nem tem de saber, pelo menos, ficou com a ideia… Limitei-me a anuir a tudo, não sei em que momento compreendi o fastio daquelas tardes de pastelaria, das descrições tão pormenorizadas dos contemplados artigos de moda, tudo elevado a um absurdo incomportável, assim que o chá lhe é colocado na mesa, com a deselegância habitual, talvez fruto daquelas mãos de palmas arredondadas e dedos curtos, secundado pela tradicional torrada, logo ela Toma! Tira-me uma foto! Ao menos, ficam a saber que há costumes que se mantêm, resignada, pego no aparelho, sempre com a ponta dos dedos, talvez pela repulsa do que simboliza, faço o enquadramento, não deixo de entreabrir os lábios em espanto face ao quadro agora contemplado, uma mulher, na serenidade de uma tarde repousante, segura a sua chávena de chá, na elegância de indicador e polegar, olha, numa expressão enigmática, o mundo através de uma janela grande, vidro de alto a baixo, nem vestígios de visas cancelados, saldos de quarenta por cento, telefonemas a insultar o ex, cheguei a pensar, confesso, que o monólogo, de há pouco, fora uma alucinação minha, devolvo-lhe o aparelho, sempre com a ponta dos dedos, talvez pela repulsa do que simboliza, logo ela Vais ver! Não tarda nada, começam a pôr gosto e a comentar… São umas invejosas! E é sinal de que estão sempre agarradas a isto! Coitadas, não fazem mais nada… São mesmo umas tristes! Com a mania de “tias”, mas não têm onde cair mortas! Pois, tu nem falas, mas a vida é isto mesmo, metes uma foto destas, e roem-se todas! Coitadinhas… Sempre agarradas a isto! Sabes, vivem fantasias… E tu? Conta coisas… Vá, diz qualquer coisa… Não ias, pois… Lá… Espera! Olha, acho que já tenho um comentário…

domingo, 16 de março de 2025

Dolorosamente real II

 


Saíam, neste momento, daquela estrada que tão bem se faz pagar, como se lhe houvesse alternativas, e mergulhavam em paisagens que ela olhava com uma estranheza e familiaridade simultâneas (quantos eus cabem numa vida?), ele percebera-lhe a delonga do olhar, enquanto o automóvel sob a sombra de frondosas ramagens ou a atravessar verdes planícies com a inevitável ponte sobre um anónimo rio, para emergir o diálogo, ele desacelera um pouco, estavam quase a chegar, “Como te estás a sentir ao rever tudo isto?”, “Como se já tivesse sido outra… Há qualquer coisa de irreal ao revermos lugares onde há muito caminhámos… Procuro-me por ali, mas não me encontro! Não sei se me faço compreender…,” ao fundo da estrada, revelam-se as primeiras sombras de betão, “Vamos directos para a capela, certo?,” “Claro! Jamais volto a entrar na casa de um deles! A comoção, muitas vezes, tolda-nos o bom-senso, não será este o caso.”, “Tens a certeza? És sempre tão emotiva nestas ocasiões…,” “Com o tempo, somamos funerais, só nos resta orar para que nunca sejam os indevidos,” “É um facto!”, “Concluo que a vida é um lento e doloroso anoitecer. A visão fresca e matinal de uma criança sobre as coisas do mundo, com o tempo, vai-se desvanecendo, desvanecendo, desvanecendo, por fim, resta o céptico e amargurado olhar de um velho… Já não encontro candura nas coisas à minha volta, quando aqui chegava, em criança, imaginava mundos, uma pureza nas coisas tão distante da urbe, espelhada até nos modos mais espontâneos das gentes, olhava os que hoje chamo de estranhos como se fossem, em verdade, família, sabes, era tão mais feliz, é duro acordar para os factos da vida, muito duro…,” “É triste deixar de ser criança…”, “Não é por aí! A maioria dos adultos não despertou para a realidade… Continua piamente a acreditar na versão que lhes é apresentada… E se alguém ousa desmenti-la, a coisa complicar-se-á… Concluí, há uns bons tempos, que a diferença entre um adulto e uma criança reside no facto do primeiro realizar contas para sobreviver, quanto ao resto, nada de significativo, apenas a troca de umas brincadeiras por outras…,” “Falaste há pouco de aqui chegares, em criança, imaginares mundos e de sentires uma pureza nas coisas muito distante da cidade, certo? Ainda vislumbras resquícios desse idílio à tua volta?”, “Apenas desencanto por ter sido tão pueril!,” “Olha, chegámos, ali está a capela!,” “Estranho, não vejo ninguém! Como se nada passasse… É esta a capela, certo?,” “Qual a dúvida?,” neste ponto, ela cometia um erro fatal, dirigia-se para o funeral de uma idosa, os funerais dos velhos são de um discreto silêncio, como um entardecer invernoso, os poucos ali presentes com semblantes respeitosos, mas sem vestígios de tristeza, tudo encarado com naturalidade, como se um acto de misericórdia a extinção do fardo da existência a quem somara tantas décadas, a partir de certa idade não se pergunta de que se morre, apenas se aguarda que a morte bata à porta, conseguiram estacionar próximo da capela, saíram do carro e para lá se encaminharam, para sua admiração, ele chegara primeiro aos três ou quatro largos degraus, de pedra enegrecida, que precedem a entrada, ela refreara a marcha para observar se por ali algum vulto do passado, não havia por ali ninguém, apenas o incessante e tão monótono vai e vem de carros da cidade, ostentava uma expressão desconfiada desde que ali chegara, parecia caminhar por território hostil, após os largos degraus, de pedra enegrecida, acabou por ladeá-lo, antes de entrar, conseguiram observar todo o interior da capela, era acanhada, o caixão ocupava praticamente o centro, a luz provinha das velas, a ambiência repercutia-se no sentir, um adeus impronunciado, o tremeluzir alongado das chamas como gestos conformados de despedida, o dever cumprido ou talvez não ao olhar de quem assiste e só resta acenar adeus, chegara o momento da partida, três ou quatro vultos no interior, já curvados para a terra, familiarizavam-se, como todos nesta caminhada, antes de, por fim, a abraçar, reconheceram dois, ele murmura-lhe “Não os vais cumprimentar?”, “Não foi por eles que vim!”, avançou, ele seguiu-a, o caixão fechado, na cabeceira uma fotografia, sorridente, de quem se despediam, como era pungente recordar aquela vivacidade eternizada, numa determinada circunstância, de quem começa a ser memória, curvou-se e colocou a sua mão, ele limitou-se a observar, poucos segundos depois, ela reergue-se, olha a fotografia, a emoção denota-se no brilho do olhar, baixa o rosto e abandona a capela, ele curva-se respeitosamente e segue-a, só pararam junto ao carro, “Não os devias, pelo menos, ter cumprimentado?”, “Até a morte tem de ser hipócrita? O acto mais radical da existência é morrer, para quê nodoá-lo com hipocrisia? Creio sinceramente que ali estavam para ver a minha reacção. Se lhes concederia algum protagonismo? Não, jamais! Como te disse, há muito se tornaram estranhos, por aí ficam…,” “Como te sentes após…?,” “Uma porta que, por fim, de vez se fechou.” “Imaginas o que mais me custou? O caixão fechado e apenas uma fotografia, de um momento feliz…,” “Ouvi esse desejo em duas ou três ocasiões. Nem sei como se lembraram de tal! Quando chegar a minha vez, também quero desta forma. A última imagem deve ser em vida e não um corpo inerte de onde a alma já partiu.”, “Concordo inteiramente. Então quando se metem a beijar a testa de um cadáver… Sempre achei tétrico!,” “Sem dúvida! Sabes o mais curioso? Recordo-me perfeitamente do dia em que aquela foto foi tirada! Eu era criancinha… Foi num passeio… Afinal, ao olhar para trás, até encontro risos… Era Primavera, acho que ainda não ouvira a palavra morte.

domingo, 9 de março de 2025


 “Com o tempo, somamos funerais, só nos resta orar para que nunca sejam os indevidos..."

in Dolorosamente real II