A vida são dias e dias que se
atropelam numa voracidade crescente, até que, sem aviso, chega aquele, o fatal,
em que tudo cessa. Assim sendo, quantos perduram em nós? A quantos regressamos
para nos aquecerem o sentir? Pois, andava eu para aqui, com estas e outras
questões, quando me dei conta do deserto de respostas, se quisesse levantar um
dia na memória, confesso a minha inaptidão, momentos sim, embora, nestes
últimos tempos, alimente o espírito somente de dois ou três, de facto, até espiritualmente
me tornei dietético, como dizia, dois, três, quatro momentos, mas eu queria
trazer um dia ao hoje, inteiro, cintilante, incontornável, um dia que valesse
por uma vida. Se pensar bem, pois, sim, talvez, sim, esse mesmo, ainda no
namoro, porque o casamento é um fim, e a beleza acompanha sempre o passo, nunca
o sofá (o que há de sublime num sujeito sentado no sofá diante de uma
televisão?), há uns dias ela falara num piquenique, a princípio, eu renitente, nunca
fui adepto de me sentar no chão, quanto mais para comer, mas a sua insistência,
acompanhada de um visível entusiasmo, fez-me capitular, ficou agendado para um
Domingo, à hora marcada, não, não foi bem assim, nesses tempos, eu chegava
sempre adiantado, só queria estar junto dela, nem que fosse sentado no chão
sobre uma toalha aos quadrados, toquei à campainha e aguardei que descesse, não
me apeteceu subir, estaria lá a família e necessariamente teria de fazer sala,
e eu que nunca fui pródigo a encontrar diálogos na algibeira, confesso aqui a minha
total inabilidade em povoar silêncios, mas, como dizia, aguardei que descesse,
escudei-me com a recorrente desculpa de ter o carro mal estacionado, ainda
hoje, por aqui, a imagem dela, a sair do prédio, trazia um vestido claro, só se
me gravou a impressão, não sei se era branco ou bege, apenas a ideia de ser
claro como o dia, tudo em consonância, o cesto pela mão, os gestos graciosos,
no rosto apenas Primavera, após um beijo fugaz assim que se abeirou de mim, afinal,
podia haver familiares à janela, depositou o cesto na bagageira, e lá fomos a
caminho do parque, nos alvores do amor encontramo-nos mais no outro do que em
nós, como é ampla a extensão de espelho que se nos oferece, para depois se ir
subtraindo, subtraindo, subtraindo, até nos sabermos perdidos num equívoco, pelas
janelas abertas do carro entrava aquele início de uma tarde primaveril de
Domingo, não me lembro do que falámos, em mim apenas o conforto de saber que o
meu coração serenara assim que ela a meu lado, chegados ao estacionamento, uma
sombra à minha espera, ocupei-a de imediato, o carro já em apelos de reforma,
havia sido de minha mãe, o que não augurava o melhor dos tratamentos mecânicos,
de novo, a bagageira, agora fui eu que me inclinei pelo cesto, lá fomos, de mão
dada, caminhámos um pouco em busca do lugar que se nos afigurasse mais
aprazível, foi numa ligeira eminência, à sombra de um plátano, que assisti,
encantado, à graciosidade com que a relva se cobriu de quadrados azuis e
brancos, sobre estes surgiram tupperwares
ora com salgados, ora com sandes, havia outro com bolachas, ainda apareceu
um sumo, uma cafeteira, por fim, sentámo-nos, ela em sorrisos, começou por
servir café em dois copos plásticos, brancos, ligeiramente abaixo, um grupo de
crianças atrás de uma bola, percebi-lhe maternidade no olhar, eu sempre aquém
de tais desígnios, porém, se por ela me sentara no chão, ainda mais para comer,
quem sabe, um dia, uma mão diminuta dentro da minha e eu a guiasse para longe
dos perigos do existir, por momentos, olhámos na mesma direcção, talvez ela
esperasse pelo meu pensar, pois, creio que sim (...)
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