Há figuras que necessariamente levam
tempo a ganhar relevância em nós, não foi o caso em apreço, desde a primeira
troca de palavras, compreendi estar perante um singular e eloquente vulto cultural, a primeira frase que lhe retive
foi, no fundo, a sua carta-de-apresentação “Sou maqueiro, sim, sou maqueiro”, assim, lacónico,
expressivo, devidamente audível, digno de reflexão, em verdade, até esse
momento, por muito que vasculhasse na memória, não me recordo de ter conhecido
um maqueiro, muito menos um que tivesse gáudio em sê-lo, foi num contexto, do hoje, onde saúde e vaidade se fundem,
que o conheci, saúde e vaidade parecem conceitos antagónicos, no entanto, o
hoje é o território da estranheza, por conseguinte, as fronteiras
esboroaram-se, a alguém interessa este cenário, voltando à nossa personagem, já
dobrara os sessenta, contudo, o seu gritante anacronismo provinha de uma manifesta
ruralidade nos modos e palavras, treinava com uns andrajos, as calças próximas
de umas ceroulas encontradas na última visita ao sótão, a camisola,
inevitavelmente de alças, onde pontificava uma ou duas nódoas, deixemos neste
ponto a imaginação adormecida para a génese das mesmas, demasiado justa para a
sua volumetria, sobretudo na cintura, onde, para mais, colocava um
cinto-de-ginásio – como se um imperativo para quem
julga levantar toneladas e toneladas –, não é necessário um apurado poder
de dedução para inferir que o papel do cinto seria tão-só, na sua mente,
disfarçar o enorme barrigão, não me
recordo do calçado, confesso, as perninhas demasiado aquém da volumetria do
tronco, onde se destacava aquela vasta cintura refreada pelo omnipresente
cinto-de-ginásio – como se um imperativo de quem julga levantar toneladas e
toneladas –, entrava sempre munido de uma garrafa, cheia com um líquido
de cor duvidosa, para dar credibilidade à aura que procurava
transmitir, era de poucas palavras aos primeiros contactos, por regra, os
heróis não são conhecidos pelo seu carácter extrovertido, este também cumpria tal
premissa, demonstrava abnegação nos exercícios, durante os períodos de
descanso, rondava o aparelho onde estava, com uma expressão a meio-caminho
entre um felino e um sentinela, um autêntico durão,
daqueles que o cinema já não produz, não lhe peçam velocidade, com aquele
barrigão, o mais natural, seria, à segunda ou terceira-passada, cair para a
frente, também para solidificar a imagem de duro, muito
duro, um autêntico durão, era comum ouvi-lo emitir urros enquanto se
esforçava para levantar barras ou halteres, embora, com um pouco mais de
atenção, concluíssemos haver um dessintonia entre os urros e os pesos
levantados, mas a atenção às coisas está num galopante desuso, esse aspecto
ajuda a consolidar os lancinantes urros de figuras como esta, certo dia, alguém
resolveu desvendar o mistério do líquido, de cor duvidosa, que preenchia a
garrafa, nesta altura, já o Maqueiro-Barrigudo caminhava para o seu primeiro trimestre
por ali, assim que o seu olhar no conteúdo da garrafa, o Maqueiro-Barrigudo
estaca, levanta-se, vai ao encontro do curioso e pergunta-lhe: “Quer saber
o que trago na garrafa?” O curioso prontamente anuiu, os olhos do
Maqueiro-Barrigudo brilharam, parecia que, por fim, alguém questionava a origem
dos seus super-poderes, como toda a icónica personagem não se fez rogado em
desvelar a origem dos seus extraordinários super-poderes, com a devida
teatralidade, pegou na garrafa, de plástico, seria daquelas habituais de litro
e meio, abanou-a com vigor, numa clara manifestação da sua inesgotável energia,
baixou o volume da voz, afinal, ia revelar a origem dos seus extraordinários
super-poderes, não convinha ficar do domínio-público, um super-herói, por
cidade, é o suficiente, além de que o ginásio só tinha um ou dois cintos,
imagine-se uma multidão de titãs atrás dos cintos para ocultar os respectivos
barrigões! A dicção do Maqueiro-Barrigudo era sofrível, na sua incessante busca
por uma voz áspera, condizente com a ansiada imagem de duro, muito duro, um
autêntico durão, acabava por comer sílabas em simultaneamente salivar em
demasia, o curioso só reteve: “Sopa… Avó… Agriões… Borrego… Nabo…”; pouco
mais, no fim, ainda questionou: “Onde julga que vou buscar força para
carregar macas o dia todo?!”, apontou para o braço liposo, numa demasia
pálida, onde se visualizava tudo menos os frutos de frequentar um contexto, do
hoje, onde saúde e vaidade se fundem, acrescentou: “Não duvide: depois de
todo este esforço, vou carregar macas o resto do dia!”, o olhar do curioso, sem
querer, desceu à extraordinária proeminência abdominal, talvez o visualizasse a
empurrar uma maca, para cima de uma ambulância, com aquele inevitável auxílio, espero,
com sinceridade, que nunca precisem de ambulâncias, se infelizmente for
necessário, rezem para que seja alguém, munido de uma garrafa, cheia com um
líquido de cor duvidosa, aí haverá uma certeza: os super-heróis existem: em
vosso socorro veio o Maqueiro-Barrigudo!
Livros do Escritor
sábado, 30 de setembro de 2023
O Maqueiro-Barrigudo
sexta-feira, 29 de setembro de 2023
quinta-feira, 28 de setembro de 2023
A meninice ocupa sempre mais espaço
segunda-feira, 25 de setembro de 2023
sexta-feira, 22 de setembro de 2023
Onde leva essa estrada?
segunda-feira, 18 de setembro de 2023
A biografia inarticulada do sentir
sexta-feira, 15 de setembro de 2023
Entre as nuvens e o húmus
Não me arranja uma moedinha?, nem sopesava a frase, já nem a ouvia, saía-lhe, apenas isso, a mão estendida atrás de passos apressados, ou temerosos, tudo depois de auxiliar mais um estacionamento, a maior parte das vezes na ilusão de uma necessidade, não para ele, mas para quem se obstina numa arte, como tantas vezes acontece, que jamais será sua, e como é fácil perdermo-nos nos horizontes de nós, Não me arranja uma moedinha? Desde quando esta frase? Talvez há um par de anos, ou mais, embora, se lhe perguntassem, não soubesse o que dizer, como é fácil perdermo-nos nos horizontes de nós, escolheu o entra e sai do supermercado mais próximo, nem se importou se, por ali, rostos de há tanto, talvez assim mais moedinhas, talvez houvesse menos passos temerosos, talvez, afinal, não fosse um estranho, no entanto, ele é que se despedia do ontem com a máscara do hoje, procurava disfarçar os contornos acentuados do rosto com uma barba deslustrada, um pouco como aquela vegetação tímida que apenas acentua a esterilidade de um solo, a pele irremediavelmente escurecida, percebia-se que o clima não fora convidado para este processo, a voz arrastada enfatizava ainda mais a escassez vocabular, apesar de ter conhecido os corredores académicos, de facto, talvez tenha sido aí que se começara a formar uma questão na sua mente (Não me arranja uma moedinha?), nele sempre o gosto por…, mas lá em casa nem se ouvir falar de tal, porém, os olhos maternos traíam, por vezes, este nem se ouvir falar de tal, e traição rimava com compreensão diante do seu olhar, mas o silêncio materno anuía quando se proclamava bem alto nem se ouvir falar de tal, como se outorgasse tal imposição, não se recorda do momento em que ensurdecera para as imposições caseiras, em verdade, poucos o devem recordar, como tudo na vida, vai acontecendo, até que, num repente, olhamos e o dia é, ou já foi, sempre aquela extenuada analogia entre enxada e canudo, cantada entredentes pela voz áspera do pai, a partir de certa altura, quando se avizinhava que estes objectos iam ser introduzidos na conversa, sempre naquele tom profético e irreversível, parecia-lhe sentar-se no cimo de um monte distante, um daqueles pontos onde vemos sem ouvir, daí a distância, daí a elevação, enquanto no vale do acontecer tudo se desenrola como se escrito por uma mão demasiado distante da nossa vontade, certa manhã, o sono a trair-lhe a direcção dos corredores académicos, a voz áspera do pai, sempre naquele tom profético e irreversível, a repetir uma extenuada analogia, por outro lado, havia coisas de que nem queria ouvir falar, como se naquela casa houvesse apenas dois temas de conversa: enxada e canudo; nessa manhã, em verdade, ainda viu o metropolitano diante de si, ainda avançou uns metros, quando as portas se abriram, tão empurrado foi pela desencantada pressa de quem corre pelo pão do dia, ouviu aquele apito arrastado e nada estridente, as portas fecharam-se, partiu, quando se lembrou da sua circunstância, já regressara à superfície, deambulou um pouco durante a manhã, sabia, sem saber muito bem o porquê, que procurava gente de acordares tardios, como tudo neste existir, sabia que teria de enfrentar um rito iniciático, temos sempre uma inclinação a ignorá-los, mas surgem a cada esquina, e assumem tantas formas, uma questão, um olhar, um cumprimento, uma resposta, uma graça, e a reacção do outro dita sempre um destino, acenar-lhes-ia com a carteira e falaria da sua vontade em esquecer o mundo, assim foi, tudo tão depressa, sempre demasiado depressa quando chegamos ao amanhã e compreendemos o contrastante vagar do hoje, de casa apenas a memória dos últimos gritos, e de costas, curioso, já não se lembra dos olhares, apenas das costas, chegou a sentir falta, um pouco antes de, daquela extenuada analogia entre enxada e canudo, cantada entredentes pela voz áspera do pai, como se um cântico de regresso, porém, só a sombra de costas num silêncio que afasta, como é fácil perdermo-nos nos horizontes de nós, dois dias por semana troca o posto no estacionamento do supermercado por outro no semáforo do cruzamento mais abaixo, aí vende uma revista, uma gente simpática, de uma associação qualquer, fez-lhe a cabeça com coisas que sempre soube, mas que não quis saber, pelo menos até hoje, um pouco como a luz da manhã que nos devolve os contornos das coisas, apesar de há muito os sabermos, Isso não é vida, Vai acabar mal, Mudar só depende de si, E da sua vontade, O seu vício só alimenta a riqueza de outros, Já viu a sua idade? Ainda vai a tempo de consertar muita coisa, enquanto lhe diziam estas coisas, nem os ouvia, fascinado que estava com a ausência de costas, vozes e olhares diante si, e passou-lhe pela cabeça, de verdade, talvez pela primeira vez na vida, levantar-se do cimo de um monte distante, um daqueles pontos onde vemos sem ouvir, daí a distância, daí a elevação, e descer ao vale do acontecer, onde tudo se desenrola, para encontrar alguém que o queira ouvir acabar uma frase algures interrompida…
domingo, 10 de setembro de 2023
O que queria ser um pássaro se não o fosse?