Livros do Escritor

Livros do Escritor

terça-feira, 1 de abril de 2025

 


... aprendera há muito que as feridas do corpo revelam a geografia do existir, as feridas da alma espelham a geografia do sentir...

in É isto...

domingo, 30 de março de 2025

É isto…


 

“Não te esqueças: o adjectivo que mais temos de repetir é: Espectacular!”, “Mas para quê? Tu nem gostaste daquilo…,” “Não interessa! Têm de ficar com a ideia de que tivemos umas férias de sonho… Isso é o mais importante! Lembra-te de que, quando cheira a desgraça, todos acorrem como hienas atrás do sangue!,” “Já sabes que não sou bom a inventar… E tu gostaste ainda menos do que eu!”, “E o que interessa? Nada! Se souberem disso, até rejubilam, acredita… Ainda estou para descobrir o porquê daquele maldito tempo! Para mim foi, sem dúvida, inveja! E de alguma daquelas nojentas das minhas colegas… Só pode! Nunca vi! Dois dias com um sol radioso, os outros cinco piores que Dezembro….,” “Começaste logo, mal chegaste, a publicar fotos e fotos…,” “Vens com essa conversa, porquê? Tu nem acreditas nessas coisas de… És sempre o primeiro a rebater essas teorias.,” “Verdade, no entanto, foi tudo muito estranho, mau demais… Lembras-te quando chegámos? O mar num verde-esmeralda, quente, a praia quase deserta, o mundo parecia ceder aos nossos desejos…,” “Claro que me lembro! A foto que tiraste do avião… Acredita, se não fossem as fotos, duvidaria de ter visto por ali o sol! Em verdade, duvidaria de tudo! Já tive pesadelos com aquilo, acreditas? A chuva copiosa e nós enfiados no quarto! Já nem falo da fortuna que gastámos para, no fim de contas, ali experienciar o Inferno!,” “E nem íamos com expectativas assim tão altas.,” “Mesmo, foi o contexto da altura a ditar aquele destino. No primeiro dia, chegámos, largámos as malas e corremos logo para a praia…,” “Eu todo orgulhoso pela minha escolha – apesar de, a montante, estar o contexto da altura… Depois veio o suplício!,” um casal, em lua-de-mel, durante cinco dias não sair do quarto é salutar, bem diferente é um casal, com mais de duas décadas de casamento, ser quase confinado a esse espaço, por chover copiosamente num destino somente de praia, nada mais havia para ver, a hora das refeições acabou por ser o único momento lúdico, o audível jocoso rir da vida, um ano a suspirar por sol, mar e costas voltadas para o relógio, e, chegada essa circunstância, a hora das refeições acabou por ser o único momento lúdico, o audível jocoso rir da vida, no resto do tempo deambularam pelo hotel, certa tarde foram até à piscina-interna, embora, mal entraram no espaço, fossem invadidos pelo cheiro a cloro, a humidade tão típica desse cenário relembrou-lhes Inverno, era nessa altura que ansiavam por piscinas-internas,  jamais em pleno Verão, numa ilha onde nada mais havia para ver, um destino somente de praia, instalou-se-lhes um dilacerante paradoxo, como se a vida reunisse toda a ironia possível e lhes despejasse em cima, ali estavam eles, num rectângulo cheio de água, sob uma luz-artificial, a olhar, pelas rasgadas janelas, o areal chovido, onde, aqui e ali, caminhavam gaivotas chorosas por lhes terem interditado os céus, não conseguiram ali estar mais de trinta minutos, pois, não era Inverno, e se a vida agora lhes despejava em cima toda a ironia possível, antes já lhes despejara demasiado fel, entre um casal não é costume haver muitos gestos simultâneos, o virar costas às rasgadas janelas voltadas para o areal chovido, onde, aqui e ali, caminhavam gaivotas chorosas por lhes terem interditado os céus, sair das águas artificialmente tépidas, os passos até às espreguiçadeiras, pegar nos roupões para se cobrirem e sair, constituiu uma dessas singularidades, nada disseram, mas uma certeza nascia-lhes, se sobrevivessem àquela provação, nada os poderia apartar, de certa forma as grandes tragédias do existir solidificam as relações, são exactamente as pequenas adversidades a esboroar a outrora mais bela união, e, no horizonte da existência, dois dias de sol e cinco de chuva, numas férias, são, sem dúvida, uma singela contrariedade, se lhes perguntassem, hoje, como suportaram aqueles cinco dias, não teriam uma resposta, divagariam, como é habitual quando não se quer revisitar o ontem, a verdade é que foi a esperança – de sol na manhã seguinte – a mantê-los unidos e expectantes, se todos os casais, após uma singela contrariedade, aprendessem este facto, não haveria tantos filhos a olhar estranhos na hora das refeições, de forma imperceptível, ele intuiu o seu desejo de materializar sol na manhã seguinte ao proclamar “Não te esqueças: o adjectivo que mais temos de repetir é: Espectacular!”, sim, ela estava certa, aprendera há muito que as feridas do corpo revelam a geografia do existir, as feridas da alma espelham a geografia do sentir, poucos conseguem observar a ânsia de sol, na manhã seguinte, de cada alma, “Tens toda a razão: como há pouco disseste: Têm de ficar com a ideia de que tivemos umas férias de sonho (…) quando cheira a desgraça, todos acorrem como hienas atrás do sangue!

sexta-feira, 28 de março de 2025

Já não há matinés

 


Ainda há muita coisa desarrumada em mim, apesar de, à superfície, as coisas parecerem normais, agora que ela voltou, após uma vida, foi o que me pareceu, duas décadas, mas, para mim, soube-me a uma vida, pela compreensão da dor, se é que tal é possível compreender, porém, onde, de facto, tudo começou? Vivíamos praticamente juntos, por outras palavras, partilhávamos leitos em casa dos pais de ambos, já trabalhávamos há algum tempo, não havia fim-de-semana em que o tema do casamento não fosse abordado, um pouco como aqueles objectos que repousam numa prateleira, em preces de discrição, mas logo uma mão demasiado inconveniente lhes pega numa ânsia desassossegada, assim se me afigurava a temática do casamento, de certa forma, parecia que queríamos prolongar a doçura irresponsável do namoro, apesar do apelo da idade ser de leito partilhado num só lar, de preferência pago do nosso bolso, pensamentos em berços e comunhões, no entanto, persistíamos naquela doçura irresponsável, olhava-a, por vezes, numa sempre necessária distância, só assim se deve olhar para compreender, e tantas questões se sucediam por mim, mas uma era omnipresente (O que é amar?), respondia-me de imediato, e logo corria para longe de tais dúvidas angustiantes, ninguém, antes de mim, amou de tal forma, e essa certeza pétrea era-me suficiente, contudo, a vida ensina-nos que só compreendemos a corrente da margem, e, nessa altura, eu deixava-me arrastar na doçura irresponsável do namoro, não vi os primeiros sinais de enfado que ela exteriorizava, nas tardes de Sábado, quando me perguntava Não queres mesmo ir a lado nenhum? Ainda insistia Está um dia tão bonito… Eu a querer ficar em casa, deitado, não me apetecia ver ninguém, ela, ainda, num último esforço Anda! Vamos dar uma volta. Não me apetece nada enfiar-me num quarto da casa dos teus pais. Não temos a mínima privacidade. E já não somos nenhuns miúdos! Dissera tudo, se eu soubesse ouvir, mas não, quis ficar, nesse Sábado, de tarde, tal como em muitos passados, fechado em casa, deitado, com ela a meu lado, muitas vezes só víamos televisão, afinal, vivíamos praticamente juntos, e eu achava que tudo tão certo, seguro, já nada fora do seu lugar, Domingo viria, ela, de novo, Anda! Vamos dar uma volta. Não me apetece nada enfiar-me num quarto da casa dos teus pais. Não temos a mínima privacidade. E já não somos nenhuns miúdos! Mas não me apetecia sair, cansava-me ver sempre as mesmas coisas, se uma semana a correr para o emprego, depois a correr na sofreguidão do regresso a casa, para quê, naqueles dois dias, de sabor a tão pouco, sair? Contentava-me com ela ali, a meu lado, muitas vezes só víamos televisão, afinal, vivíamos praticamente juntos, e eu achava que tudo tão certo, seguro, já nada fora do seu lugar, por norma, partia dela a iniciativa de, desde o início, a timidez sempre esteve ao leme do que eu sou, em certa medida, compreendo o porquê daquele desaguar, no meu leito, há uns anos, afinal, só procura uma baía quem se cansou de mares encapelados, houve vozes ansiosas por dar corpo a histórias, enfim, o habitual do circo humano, não liguei, até me falaram de gravidezes que capitularam com a meta à vista, talvez pela dúvida da fonte, pois, mas nunca me interessei por biografias, só me interessava ela ali, a meu lado, muitas vezes só víamos televisão, as semanas tornavam-se meses, que, por sua vez, originavam trimestres, o tempo lá ia no seu passo, ora de idoso, ora de menino, consoante o nosso olhar, até que, numa sexta-feira, o telefone, ela Amanhã não posso ir aí ter. Vem cá uma prima minha que não conheces… Não, não vale a pena… Deixa… Tenho de lhe mostrar Lisboa. Ias-te aborrecer de morte. Não, não vale a pena… Fica sossegado, afinal, amanhã é Sábado, e tu gostas de ficar com a tua televisão… Por isso, deixa-te estar e não te preocupes… Quando chegar a casa, ligo-te, não lhe conhecia primos, muito menos fora de Lisboa, percebia-se-lhe uma pressa na entoação, como o viajante que receia perder o embarque, algures uma voz sussurrava-me que ela se preparava para zarpar rumo a mar-alto, procurei logo silenciá-la, mas insistia, não a consegui calar, apesar da televisão, da tarde de Sábado, eu deitado, mas ela não a meu lado, nessa noite, não sei se chegou a casa, apenas percebi que o meu telefone permaneceu no silêncio crescente da minha angústia, Domingo, assim que a hora me pareceu apropriada, quando as casas dos vizinhos já exalavam torradas e café, eu com o auscultador encostado à orelha, enquanto um som arrastado me dizia que um telefone por mim desejado se fazia anunciar, até que o som arrastado se precipitou na intermitência por ninguém ter acorrido, insisti, insisti, nem pensar em desistir, insisti de novo, tudo se precipitava numa exasperante intermitência, resolvi ir bater-lhe à porta, assim foi, na rua percebi o carro dos pais, apesar da campainha, vezes repetidas, a porta do prédio numa fria indiferença metálica, regressei a casa, essa tarde de Domingo, apesar do sol, pareceu-me uma imensa noite, fechei-me no quarto, assim fiquei, mas a televisão desligada, agarrei-me, para os dias seguintes, a uma ruína de orgulho, se assim se pode dizer, dias depois, tão longos para o sentir que me habitava, pouco antes do jantar, o telefone, não consegui disfarçar a sofreguidão, corri de imediato ao seu encontro, meus pais entreolharam-se no silêncio da compreensão, era ela, desta feita, numa entoação demasiado pausada, falava-me de dúvidas, de incertezas, do cansaço pelos Sábados, de tarde, fechados em casa, cortei a conversa, ainda hoje me surpreendo pelo arrojo Conheceste alguém? Afinal já conhecia, e eu também, um amigo do irmão, advogado, parece que gostava de viajar, não, Sábados de tarde sempre fora, de um lado para o outro, desconhecia por inteiro a grelha televisiva, cama só de noite e parece que dormia pouco, pois, e há muito que tinha a sua casa, de novo, agarrei-me a uma ruína de orgulho Tens a certeza? A resposta dela, Sim, soube-me a mil golpes, uma forma de inocência acabara de se me morrer, num último fôlego, disse-lhe Felicidades…

Quantos rostos saem e entram nas nossas vidas? Os que partem na derradeira viagem, permanecem em nós, regra geral, consoante o legado da memória, com uma dignidade intocável, os outros, os rostos da circunstância, enfim, acabam por sucumbir ao momento, outros se sucedem neste incessante dia após dia apelidado de existência, e ainda há os que nos ferem de vazio, os tais que nos retiram, friamente, uma forma de ver o mundo, o rosto dela demorou vinte e dois anos a reentrar na minha vida…

Entrou, de bicicleta na mão, na minha loja de reparações de, isso mesmo, bicicletas, os Sábados, de tarde, fechado em casa, a ver televisão, deixaram de ter um sentido, ainda hoje não sei se foi de propósito, creio que sim, achei curioso a familiaridade com que me tratou, parecia retomar um diálogo algures interrompido, confesso que me soube bem, enquanto ela falava, parecia que uma parte de mim se reconstruía, sem me aperceber, caminhávamos passeio fora, apesar dos seus três filhos, do ainda marido advogado, que já não viaja assim tanto, parece que semeou demasiadas dívidas, às quais somou um desfalque, percebo agora o porquê da bicicleta, de uma certa resignação pela face, antes de se despedir, olhou-me e disse Amanhã é Sábado, não é? 

terça-feira, 25 de março de 2025

Lugar d`Além


 

“É ali que vamos ser felizes!”, a frase saiu-lhe simultânea ao pensar, “É ali que vamos ser felizes!”, o rosto em esperança, ouviu-a com indulgência, felicidade não rima com existir, “Anda, segue a seta,” perplexo olhou a placa que indicava “Lugar d´Além,” de início afigurou-se-lhe algo inquietante, porém, a resoluta expressão dela fê-lo colocar o pisca e seguir nessa direcção, tudo, neste caminhar, tem um antes, o facto de ali se encontrarem começou há uns bons anos, poucos meses depois de firmarem votos de amor e fidelidade sobre terreno sagrado e sob a cruz-divina, símbolos de compromisso nos anelares-esquerdos, foram morar num pequenito apartamento nos arrabaldes, sala que era quarto, quarto que servia de sala, uma acanhada casita-de-banho e, o que se denomina de cozinha, um corredor com uns eletrodomésticos, ao fundo, uma janelita, com um estendal, que dava para o prédio em frente, desconheciam a causa, ou talvez não, mas a cada dia parecia mais próximo, tal o crescendo de sombras que pareciam engoli-los, provinham de humildes famílias do interior, ela conseguira trabalho ao balcão de um entreposto de alegrias ou tristezas veladas por um envelope, ele, de momento, zelava para que roubassem o menos possível de um super-mercado, por estes dias é o que se requer – zelar para que se roube o menos possível –, quando certos factos se tornam quotidianos, é porque nos perdemos de vez, a ânsia de cidade e litoral fê-los abraçar o que se lhes afigurou de oportunidades, com a escolaridade obrigatória cumprida, foi o possível, o horizonte de ambos salários possibilitou apenas um pequenito apartamento nos arrabaldes – de início, afigurou-se-lhes um palácio, o calor do êxtase acelera a pulsação embora turve o discernimento –, o restante era meticulosamente calculado para que a mesa não ficasse vazia nas imperativas horas das refeições, a realidade acaba sempre por encontrar uma porta ou janela por onde irromper para fatalmente golpear a paixão, demora, no máximo, quatro meses, a fatal hemorragia, após a sua extinção, ou se levanta o amor ou surge a indiferença, para eles, felizmente, deu-se o primeiro caso, no entanto, com a morte da paixão, o contexto circundante tornou-se-lhes nítido, demasiado longínquo de palácios ou castelos, apenas um pequenito apartamento nos arrabaldes, sala que era quarto, quarto que servia de sala, uma acanhada casita-de-banho e, o que se denomina de cozinha, um corredor com uns eletrodomésticos, ao fundo, uma janelita, com um estendal, que dava para o prédio em frente, desconheciam a causa, ou talvez não, mas a cada dia parecia mais próximo, todas as noites o telefone de um deles tocava, do interior ansiavam por notícias suas, a principal se a união, sobre terreno sagrado e sob a cruz-divina, já dera frutos, as desculpas nunca acompanham a passada do tempo, são quase sempre de curta-validade, olhavam à sua volta e, por ali, não havia espaço para um berço e demais utensílios, a circunstância dela, no entreposto de alegrias ou tristezas veladas por um envelope, não lhe permitia, por enquanto, deixar o balcão, durante uns meses, para apresentar o mundo a um filho, ele ainda menos, qualquer abandono do posto-de-trabalho só potencia o acto de roubar, houve vezes em que o telefone se limitou a tocar, tocar, e tocar, ninguém calou aquele entoar impessoal e tão vulgar, indiciador da marca do aparelho e não do seu detentor, como as coisas têm mudado sob o céu,  a insistência por um fruto da sua união começava a inquietá-los, não queriam partilhar a agrura do prédio em frente, a cada dia, parecer mais próximo, se o fizessem, sabiam de antemão a ladainha que se levantava do outro lado “Tanto vos avisámos para não saírem daqui! Porquê essa fixação com a capital? Porquê? Vivem em prateleiras e nem o vizinho da frente conhecem! Aqui, ao menos, todos nos conhecemos, trabalho não falta… E com muita dignidade! O ambiente para as crianças, meu Deus, nada que ver com a cidade… Podem brincar à-vontade sem quaisquer riscos. Não há o caos do trânsito – filas e filas que desesperadamente se arrastam a caminho do trabalho, no regresso o mesmo suplício, apenas muda o sentido –, a poluição que apenas subtrai tempo de vida, a barulheira infernal de carros, buzinadelas, enfim… E o apoio que aqui teriam de nós?! Há coisa mais fundamental do que ter a família por perto??? Sinceramente…”, há quem nasça estranho para a sua circunstância, cada um deles cumpriu com este desígnio, eles não partiram da ruralidade, em verdade, eles fugiram, a monotonia daquele viver, compassada por um silêncio que retalhava a alma, quase os levou à soleira da loucura, chegaram a sentir-lhe o odor, pois, há quem nasça estranho para a sua circunstância, cada um deles cumpriu com este desígnio, foi num passeio de fim-de-semana, numa povoação próxima, que ela se deteve numa placa a indicar “Lugar d´Além,” de mão no ventre murmurou-lhe “É ali que vamos ser felizes!”