Antes
da chave na porta, já lhe ouvira os saltos no patamar, a porta a abrir e
fechar-se, o elevador, num lamento mecânico, a caminho de outras altitudes, a
carteira pousada à pressa, o prolongado gemido da porta-da-despensa, por fim,
uma breve luta para abrir algo, encosta-se à bancada e suspira, de onde estava,
no sofá, frente à televisão, visualizava, no pensar, cada passo da filha, ia
para dois meses desta cadência, acabava, minutos depois, por lhe aparecer,
cumprimentos, frases de circunstância, tudo muito pela superfície, bastavam os
olhares para se compreender a desolação pressentida, filhos e pais, a partir de
certa idade, simplesmente não devem coabitar, antagónico à ordem natural do
existir, as circunstâncias levaram-na a desgraçadamente
regressar ao ninho materno (se assim se pode designar), apesar das vincadas
diferenças entre elas, quando dali partira, há cerca de quinze anos, afirmara “Só aqui regresso, para vos visitar…”, o pai
ainda presente, em verdade, a frase era-lhe dirigida, entre elas sempre
vincadas diferenças, a vida e o seu enlear levaram-na a capitular quantos dos
seus valores? Contra os desígnios maternos, juntou-se a um sujeito mais velho,
divorciado, pai de dois filhos, a mãe incessantemente lhe repetia (“Casar rima com alguma segurança, juntar é de uma total
insegurança”), ela prontamente rebatia com conceitos
oníricos de Felicidade e Realização, a mãe respondia (“Casar rima com
alguma segurança, juntar é de uma total insegurança”), passados oito meses,
anuncia aos pais a sua gravidez, vendia viagens na agência do sujeito, aí se
conheceram, embora detestasse fazer as malas, aqui se vislumbrava uma primeira
fissura que não passou despercebida ao atento olhar materno, ele sempre
prontinho para o próximo destino, assim que soube da gravidez aparentou
entusiasmo, a paternidade não lhe era estranha, não é possível, a quem está de
fora, percepcionar a força e magia dos invisíveis laços que levam um homem e
uma mulher a caminhar na mesma direcção, oito semanas depois de anunciar aos
pais a sua gravidez, certo final de tarde, a olhar os sapatos, num murmúrio,
comunica-lhes que não vingou, o médico, por precaução, desaconselhou novas
tentativas, o problema era dela, estrutural, o pai abraçou-a prontamente, a mãe
questionava a razão de a filha ali estar sozinha a dar-lhes tal notícia, pensou
em questioná-la onde estava o sujeito, a emoção da cena fê-la silenciar-se, há
muito não via pai e filha tão irmanados na dor, sabia do seu sonho de ser avô,
agora, nesse final de tarde, esfumado, não conseguiu levantar-se e abraçar a
filha, o marido já o fizera por si, permaneceu sentada e emitiu frases de
ocasião, o facto de a filha ali estar só, a dar-lhes tal notícia, apenas lhe
causava repulsa, em verdade, nem conseguia fitá-la, não era também seu objectivo ser avó, tal
como mãe, daí só ter aceitado o facto por uma vez, tudo fez para que não se
repetisse – quando lhe puseram aquela pequena criatura nos braços, enrugada,
ruborescida, que se contorcia como um idoso, em busca de uma posição que lhe
pacificasse ossos e articulações, olhou-a como uma estranha, ainda procurou, em
si, de todas as formas possíveis, ligar-se àquele
diminuto ser que segurava, um espelho, algo seu por ali derramado, nada, essa
foi a verdade, nada, por si ecoaram frases ocas repetida e exaustivamente
propaladas (“É um momento único! Inexplicável! Tornamo-nos logo outras… A
vida muda naquele segundo… Deixamos de importar, só o bebé… Até o nosso
respirar muda… Nada de iguala àquele instante em que nos depositam o bebé nos
braços… Vale por uma vida! Não se encontram palavras à altura de tal sentir…”),
ela ainda procurou, de todas as formas possíveis, ligar-se àquele diminuto
ser que segurava, um espelho, algo seu por ali derramado, nada, essa foi a
verdade, nada –, sentiu padecer de um qualquer
inominável mal, foi dos momentos de maior solidão da sua existência, talvez
o maior, naquela madrugada, com a bebé nos braços, olhá-la e nem vislumbres de
um sentir cantado desde tempos imemoriais, um sentir que jamais ousou comunicar,
pois, sentiu padecer de um qualquer inominável mal, extenuada, dorida, sapiente
de que a dor maior jamais poderia verbalizar, levaria dali uma estranha, nos
braços, para casa, uma noite de hospital é a eternidade, quando a luz se
apagou, ela só se recorda de virar costas, ao berço plástico ao lado da cama, e
rezar pela misericórdia de um sono que a levasse para bem longe dali, apesar de
ela jamais verbalizar o seu sentir, com o tempo, a filha bebeu-o, o olhar na
direcção da mãe apenas reflectiu esse fel, quando o pai se aproximava, o rosto
suavizava-se e o olhar em luz, assim decorreram os anos entre eles, vendo bem
as coisas, sob a luz do tempo, a verdade é que o pai não insistiu muito em
dialogar por outro filho, é possível que, nos primeiros meses, em múltiplas ocasiões,
a visse de costas voltadas para o berço a seu lado, há coisas, na vida, que
sabemos, no entanto, incompreensivelmente não queremos acreditar, por
conseguinte, atiramos para uma indistinta zona de nós, algures entre indizível
e o esquecimento, para continuarmos a respirar com quem vive sob o mesmo tecto,
as circunstâncias levaram-na a desgraçadamente regressar ao ninho materno (se
assim se pode designar), apesar das vincadas diferenças entre elas, quando dali
partira, há cerca de quinze anos, afirmara “Só aqui regresso, para vos
visitar…”, o olhar da mãe gritava-lhe essa frase, sentia-o de onde estava,
encostada ao balcão da cozinha, de olhos fechados, a saborear, com lentidão,
cada quadrado do chocolate que há pouco abrira, precisava daquele doce para
equilibrar o tanto fel que a habitava.