Livros do Escritor

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domingo, 17 de novembro de 2024

Deus também erra?

 


Ensinaram-me, em criança, que Deus é perfeito, o mal é resultado do livre-arbítrio do homem, sempre tive estas duas premissas bem presentes, até que, há uns dias, alguém, durante o relato de um episódio biográfico, a dada altura afirma: “Deus também erra”; a frase ecoou por cada canto do meu ser (“Deus também erra”), em verdade, tirando a perspectiva teológica, eu não tinha como contrariar esta evidência (“Deus também erra”), quem, nos seus passos pelo aqui, não queria, num dado momento, tudo fosse uma outra coisa? E o amanhecer confrontado (ou será resignado?) com o mesmo tão indesejado do ontem, um velho aforismo dita que “Não há ateus na hora da morte,” concordo plenamente, a morte acompanha-me a cada passo, porque, há muito, não a temo, em verdade, só a receei durante a infância, no entanto, houve em mim uma mudança, desconheço a sua génese, facto é que desde a adolescência me sinto pronto para a acolher, num certo momento até já lhe senti o calor, a morte não é fria, como se pensa, mas quente e tranquilizadora, a primeira sensação que tive, ao ouvir esta frase (Deus também erra”), foi de distância, senti que talvez Deus se tenha cansado do homem e partido para bem longe, minha avó sempre me pareceu ser detentora de um canal de comunicação privilegiado com Deus, as pedras, entre seus dedos, ritmadas por palavras suplicantes e de glória, ora de manhã, ora de tarde, sempre uns momentos consagrados para pôr a conversa em dia com o Criador, e não passava um dia sem entrar no lugar de encontro entre nós, que para aqui andamos, e Ele, a seu lado, era impossível esquecê-Lo, meu pai também era crente, nunca se deitava sem antes dirigir umas palavras de louvor e gratidão ao Altíssimo, embora nunca lhe visse pedras, entre seus dedos, ritmadas por palavras suplicantes e de glória, ora de manhã, ora de tarde, só uma vez por semana entrava no lugar de encontro entre nós, que para aqui andamos, e Ele, de uma visita diária a uma semanal, pois, apesar da fé paterna, em relação a minha avó, a presença de Deus, lá por casa, diluiu-se um pouco, feitas as contas, que dizer da minha…? As coisas, pelos vistos, estão num gritante decréscimo, ou terão somente mudado de coloração? Outro velho adágio dita “Cada um tem o Deus que merece,” pois, não sei, como todas as relações, há os seus altos e baixos, proximidades e enormíssimas distâncias, a verdade é que Nele acredito, independentemente da forma, o conteúdo só pode ser fatalmente o Bem, continuo sem responder à questão (“Deus também erra?”), apesar de me ter sido apresentada sob a forma de uma afirmação, a realidade é que não tenho resposta, só quando a morte se sentir pronta para me acolher tê-la-ei, antes é, de todo, impossível não dar uma resposta parcial mediante a nossa circunstância, dei voltas e voltas à cabeça e, de facto, o “sim” é a resposta mais plausível, quantos sonhos sepultados não jazem à vista do nosso horizonte? Quantas vezes o acontecer não foge à cor do nosso sentir? Quanta Dor não grita na noite das nossas almas? Quase subscrevo que “Deus também erra,” mas aqui levanta-se-me a honestidade, o facto de só deter uma visão parcial dos factos, vemos o mundo da varanda de nós, é esta a nossa realidade, o vislumbre do Todo é apenas uma quimera, por conseguinte, não, não posso subscrever tal afirmação, também não a posso refutar, isto que fique bem sublinhado, só quando, por fim, o meu cansado coração adormecer, conseguirei responder, se minha avó sempre me pareceu ser detentora de um canal de comunicação privilegiado com Deus, as pedras, entre seus dedos, ritmadas por palavras suplicantes e de glória, ora de manhã, ora de tarde, se meu pai nunca se deitava sem antes dirigir umas palavras de louvor e gratidão ao Altíssimo, eu para aqui ando, como todas as relações tem os seus altos e baixos, proximidades e enormíssimas distâncias, a verdade é que Nele acredito, talvez, de um certo lugar, estas palavras se assemelhem às pedras que passavam entre os dedos de minha avó.

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Quando ainda fôlego para uma derradeira súplica…

 


Ao passar, diante daquele edifício branco, com uma cruz ao alto, a imagem da mãe, nos últimos tempos reduzida a um ténue articulado de ossos, envolta num manto negro, a ali entrar, todas as tardes, numa discrição condizente com as vestes, de imediato o respeito conduzia-lhe os joelhos ao chão, assim ficava, a passar aquelas pedras por entre os dedos, enquanto os lábios pediam que as alturas se lembrassem, nem que fosse um pouco, de nós que para aqui andamos, todas as tardes de uma vida, neste ponto, afastou-se da mãe, tal como em muitos outros, nunca foi apologista de discretos mantos negros como vestes, nem de joelhos no chão, mas, hoje em particular, gostaria que alguém se lembrasse, nem que fosse um pouco, de nós que para aqui andamos, parou, percebeu a porta aberta, o mundo mergulhado na tarde da vida, cada um cumpria com o seu destino de horas e afazeres, deixou-se ali estar por uns instantes, contou os degraus até à porta aberta, daquele edifício branco, com uma cruz ao alto, totalizavam sete, hesitou, até que, sem o perceber, já vencia o primeiro degrau, nem uma dezena de segundos depois, transpôs a entrada e logo aquele silêncio a envolveu, como se sempre ali estivesse à espera do seu regresso, apreciou aquela semi-obscuridade, instava a confidências e reflexões, apenas dois ou três vultos àquela hora, a quem o respeito conduzira os joelhos ao chão, pediam para que alguém se lembrasse, nem que fosse um pouco, de nós que para aqui andamos, inspirou profundamente e sentou-se, o seu olhar maravilhado pelas chamas ondulantes das velas espalhadas pelo templo, havia algo de irreal nessa luz que se curvava com uma qualquer brisa para logo se reerguer, numa verticalidade fantasiosa, rumo às alturas, passaram-se décadas desde que ali estivera pela última vez, a vida, pois, afastou-se dessas questões de pedir ajuda a um amigo que habita algures entre o pensar e sentir de cada um, além disso, tem muitos nomes, consoante o idioma em que o convocamos, uns desistem, julgam que nunca responde, outros afirmam que sempre responde, mas numa outra linguagem, porém, algo sobreviveu às décadas desde que ali estivera pela última vez: o silêncio. Dali, o mundo parecia um lugar longe, tudo se tornava relativo face àquela promessa de alturas, embora os joelhos dela, sem saber como, sintam, neste momento, a frieza áspera das lajes, junta as mãos e ali repousa, agora, a testa, enquanto procura as palavras certas para recuperar um diálogo interrompido há décadas, a vida, pois, caminha, agora, pelas paisagens de si, tantas sombras, talvez por cansadas noites sem luar, aqui e ali um vestígio de luz sempre filtrado por algo, mas também espaço para vislumbres de Sul, subidas demasiado íngremes, precipícios abruptos, vales de pouca extensão, lugares recônditos que convidam a confidências e virar costas ao tempo, se ao menos aquelas pedras para passar por entre os dedos, enquanto os lábios pediam que as alturas se lembrassem, nem que fosse um pouco, de nós que para aqui andamos, mas nada, de repente, senta-se diante de um dia da meninice ida, vê-se a perguntar, à sua avó, por aquele amigo que habita algures entre o pensar e sentir de cada um, a resposta da velha não tardava Ele, antes mesmo de lhe pedires, já sabe o que queres, tão estranho, pensou na altura, no entanto, hoje compreendeu perfeitamente as palavras da velha, de repente, diante dela, o marido a abrir aquela gaveta, um copo com água na mão, a pegar sofregamente numa lamela, a retirar um comprimido para logo o engolir, sem espaço para mais, reflectir, ponderar, sopesar, tudo tão longe, ele queria aguentar mais um dia, e se chegar ao amanhã, tudo se repetirá, abrir aquela gaveta, um copo com água na mão, a pegar sofregamente numa lamela, a retirar um comprimido para logo o engolir, tudo isso desde que não se levanta pelo pão de cada dia, nem dignidade para lhe dizerem que foi despedido, rotularam-no de dispensado, feriu-o ainda mais o embrulho da expressão, logo ele tão directo, frontal, desconhecedor de eufemismos, a meio dos cinquenta, por outras palavras, vê a meta mas ainda está na corrida, agora nem uma coisa nem outra, como se o desclassificassem tão próximo do fim, já lá vão uns meses, tem falado uns disparates, nestes últimos tempos, que a têm assustado, a filha também não anda melhor, o casamento, nem a isso chegou, no fundo, juntaram-se, as coisas, de facto, relativizaram-se e foram destituídas do seu profundo e legítimo carácter, mas a filha a visitá-los à noite com uma frequência crescente, a contar-lhes que não gosta de passar os serões sozinha, pelo meio, diz que o companheiro acumula horários para trazer mais, no final do mês, para casa, embora ela não dispense, na hora do regresso, um saco de provisões, três litros de leite, cinco carcaças, uma manteiga, um cachito de bananas, nunca fizeram mal a ninguém, não é verdade? Se o marido estivesse acordado a essa hora, isso só seria possível se não abrisse aquela gaveta, um copo com água na mão, não pegasse sofregamente numa lamela, para retirar um comprimido e o engolir, percebia a crescente apreensão dela pela filha, cada vez mais, no pântano do hoje, se comunica o essencial calando-o, ela, antes de fechar a porta, um derradeiro olhar para a filha, com o saco de provisões na mão, que lhe diz, sem palavras, Percebes, não é? Estou prestes a ser trocada… Ele não me procura há quase dois meses. Não consigo um emprego condizente com aquele canudo que de nada me serve… E, lembras-te mãe, tantas e tantas noites em branco para o conseguir… Agora, se o evoco, olham-me como um empecilho… Se digo que nada tenho, olham-me como um verme… Nada se disse entre elas, e o marido, aquém de tudo isto, já dorme embalado pelo fruto da lamela, a olhar uma meta tão próxima, mas sempre tão longínqua… Quais são as palavras certas para recuperar um diálogo interrompido há décadas? Como pedir que as alturas se lembrem, nem que seja um pouco, de nós que para aqui andamos? Se lhe perguntassem, ela não saberia responder, levantou-se, saiu, antes, olhou maravilhada, uma vez mais, as chamas ondulantes das velas espalhadas pelo templo, ou talvez soubesse a resposta, afinal, fora-lhe revelada na meninice, pela avó, aquele amigo, que habita algures entre o pensar e sentir de cada um, antes mesmo de lhe pedires, já sabe o que queres.

terça-feira, 12 de novembro de 2024


 

... assim vão os dois, amparados, rumo à única janela iluminada da noite, para trás fica o molhe, onde uma gaivota assiste,  de um certo banco, à serenidade de um fim.

in Serenidade


 

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Serenidade


 

Caminhavam desencontrados, embora na mesma direcção, o extremo do molhe, onde um banco para assistir ao nascer da noite, ele numa passada vagarosa, hesitante, como se aguardasse ela, primeiro, no banco, a segurança de se saber esperado, uma desavença (o quê?)  fê-los caminhar desencontrados, tantas são as fontes da discórdia, ela parou a meio, virada para Oeste, olhos nas águas, a brisa entardecida ondulou-lhe uma melena, ele fingiu não reparar, não asfixiava palavras, mas sentires, o orgulho a nortear-lhe os passos, daí o caminhar desencontrado, os olhos dela nas águas, nenhum pousava o orgulho, há poucas coisas piores do que morrer de amor por dentro em troca da esterilidade do orgulho exterior, calar o sentir para suster a altivez, num repente, após levantar os olhos da água, ela regressa, passa por ele como se lhe invisível fosse, compreende-se-lhe um vislumbre de a seguir, talvez o orgulho, num derradeiro instante, o imobilizasse, em desespero olha o extremo do molhe, onde um banco para assistir ao nascer da noite, por fim, ela já uma ausência, agora é o olhar dele a encontrar as águas, ambos, como é evidente, sabem o que os fez caminhar desencontrados, não alcança, desta vez, o banco onde se assiste ao nascer da noite, pouco depois, acabou por também se ir embora, o olhar caído a espelhar que nada saiu como esperava, não há assim tanta coisa que faça um casal caminhar desencontrado, uma gaivota levantou vôo ao perceber a chegada estridente de uma criança a pedalar o triciclo, a mãe não se distanciava um passo, quase corria para o acompanhar, imobilizaram-se a meio do molhe, a criança deixou o triciclo e correu para abraçar a mãe, teria dois ou três anos, a mulher pegou-lhe ao colo e apontou extremo do molhe, onde um banco para assistir ao nascer da noite, a criança passou a mãozita pela face, onde um traço salgado corria, da mãe, a mulher ainda deu um passo em frente, hesitou, deu outro, em direcção ao extremo do molhe, onde um banco para assistir ao nascer da noite, lentamente coloca o filho no triciclo e inicia o regresso, a criança, agora, pedala ao ritmo da passada materna, nem vestígios da chegada estridente que fez uma gaivota levantar o seu vôo sobre as águas, talvez retorne assim que o molhe em silêncio, entra um casal de velhos, ela ligeiramente à frente, parece guiar-lhe os passos, ele segue-a numa obediência quase infantil, numa infinita confiança de jamais correr riscos, passos curtos embora seguros, não, nunca chegam ao extremo do molhe, onde um banco para assistir ao nascer da noite, a velhota continua ligeiramente à frente, fala-lhe ininterruptamente, o olhar ausente dele parece não ouvi-la, talvez seja só uma impressão, interrompem a arrastada marcha também a meio, é possível que ela levantasse a memória de quando, naquele exacto ponto, ele, a seus pés, lhe erguia o símbolo de amor e  compromisso, ela, por todos os meios, a contorcer-se para disfarçar as faces ruborizadas, até que, se inclinou para lhe murmurar “Sim, aceito,” passaram pouco mais de cinco décadas, todos os finais de tarde, desde que o tempo permita, descem a rua, ela ligeiramente à frente, parece guiar-lhe os passos, as suas palavras a iluminar este e outros momentos da sua história, a única que lhes importa, o resto apenas uma ilusão de entretenimentos, ele, no entanto, devorado pelo esquecimento, um vazio caminhante, uma ruína, onde o interior somente  vegetação rala desprovida de qualquer beleza, o olhar de ambos nas águas, o espanto de mais de cinco décadas passadas, as águas parecem sempre as de ontem, a expressão dele, nesses instantes, suaviza-se, parece rejuvenescer, olha-a com um brilho que, pois, é isso, fá-la ruborizar, não fosse o facto de, no seu anelar-esquerdo, figurar o símbolo de amor e  compromisso, não haveria duvidas de que, uma vez mais, ele se ajoelharia para o erguer à sua altura, uma repentina brisa relembra a chegada da noite, ela aproveita para lhe endireitar o cachecol, iniciam os passos do lar, mais uma vez, a velha ligeiramente à frente, antes dos seus olhares se despedirem das águas, as falanges dele, com uma enérgica ternura, relembram as dela que as águas parecem sempre as de ontem, recua um passo, assim vão os dois, amparados, rumo à única janela iluminada da noite, para trás fica o molhe, onde uma gaivota assiste,  de um certo banco, à serenidade de um fim.

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Deixai a aparição emergir no seio da aparência



Há vozes que, apesar de já caladas, ainda nos norteiam os passos, volta e meia, frases suas fazem-se ouvir, como é o caso desta, por norma, assim começava as frases (“Meus amigos, meus amigos…”), depois lá vinha a sentença, hoje só vou falar desta (“Deixai a aparição emergir no seio da aparência”), de facto, há frases que levam uma vida para serem compreendidas, ou talvez mais, o primeiro convite desta frase é à paciência, à espera, tão difícil, sobretudo para quem já olhou a “finitude” nos olhos, tão bem a sabe, e compreendeu que o presente é um constante passado, de vez em quando, dou por mim a revisitar velhos álbuns de fotografias, neste momento, há fotos de grupo onde se somam mais ausências que presenças, começa a enraizar-se a ideia de transitoriedade, também eu, um dia, serei uma ausência, um gesto esfumado, uma voz sumida, um rosto distorcido, é curioso, se antes, perante este “abismo”, apoderava-se de mim um terror frio e desmesurado, agora, somente resignação, uma espera consciente pela noite que se aproxima, com a sua passada indistinta e surda, nesta fase da vida, creio que a precipitação, a impaciência, em vez de agilizar as coisas, apenas as agudiza, as demora num doloroso arrastar, como se atentássemos “a ordem natural das coisas”, outra voz, outra sentença, hoje por aqui, “Meu filho, meu filho, o que é teu à tua mão virá ter”, pois, outro convite à paciência, à espera, tão difícil, sobretudo para quem já olhou a “finitude” nos olhos, tão bem a sabe, e compreendeu que o presente é um constante passado, a voz da primeira frase era de um sacerdote, homem idoso (o outro tem sempre a idade de quando o conhecemos), consagrado aos estudos, de trato fácil, humano, sapiente, a voz da segunda frase era de uma mulher idosa (o outro tem sempre a idade de quando o conhecemos), com a quarta-classe, mas a antiga, detentora da reconhecida dignidade (quantas vezes, meu pai, lá por casa: “Valia mais a quarta-classe antiga, do que o vosso liceu…”, curioso, hoje talvez lhe conceda uma larga percentagem de razão), sofrida, amarga, com o seu quê de intriguista (pena serem as últimas impressões a perdurar…), porém, ambas as vozes, provenientes de dois continentes distintos do panorama humano, apontam no mesmo sentido: o da paciência, da espera, tão difícil, sobretudo para quem já olhou a “finitude” nos olhos, tão bem a sabe, e compreendeu que o presente é um constante passado, mas, se bem analisar, quantos erros cometidos por silenciar estas vozes? E outras? Talvez por isso, volta e meia, dê por mim a revisitar velhos álbuns de fotografias, neste momento, há fotos de grupo onde se somam mais ausências que presenças, há uns dias, olhei não a foto de grupo do meu casamento, mas o lugar onde foi tirada, uns degraus, pareceram-me mais na altura, à porta da igreja, e contabilizei mais de oito ausências, ainda nem duas décadas, e oito ausências, daí a dor, a incompreensão, de revisitar velhos álbuns de fotografias, e a questão sem voz a levantar-se: “Ir-nos-emos reencontrar?”, não tanto para onde vamos quando formos uma ausência aos olhos de alguém, mas se, de facto, aqueles idos rostos, silenciadas vozes, esfumados gestos, serão de novo uma presença? E o Sentido? Onde? Detenho-me ainda com essa foto, na forma de uns degraus entardecidos, afinal, a fotografia em mim e não diante do meu olhar, ali apenas os degraus, em pedra, indiferentes, como se, nem há duas décadas, tivesse ali sido tirada uma fotografia, com uma centena e meia de convidados, agora, pelo menos, mais de oito ausências, sem contar os casais separados, muito para além do simples oito, sobre os degraus uma brisa vespertina, continuo a olhá-los, e neles encontro a paisagem interior que me habita, vozes animadas, felicitações, cortesia, boa disposição, futuro no olhar, como se isto fosse o viver, quando, de todo, não o é, não se somassem já mais de oito ausências, sem contar os casais separados, muito para além do simples oito, tudo uma ilusão, só os degraus testemunham a realidade da paisagem que me habita o pensar, e a brisa vespertina traz-me o eco de vozes animadas, felicitações, cortesia e boa disposição, num dia por vir, alguém revisitará velhos álbuns de fotografias, possivelmente se detenha a olhar estes degraus, e eu já seja mais uma ausência a somar na fotografia, se atentar na brisa vespertina sobre os degraus, talvez encontre um vislumbre destas palavras, afinal a ausência está sempre no olhar.