Livros do Escritor

Livros do Escritor

domingo, 6 de abril de 2025

Consolação

 


Antes da chave na porta, já lhe ouvira os saltos no patamar, a porta a abrir e fechar-se, o elevador, num lamento mecânico, a caminho de outras altitudes, a carteira pousada à pressa, o prolongado gemido da porta-da-despensa, por fim, uma breve luta para abrir algo, encosta-se à bancada e suspira, de onde estava, no sofá, frente à televisão, visualizava, no pensar, cada passo da filha, ia para dois meses desta cadência, acabava, minutos depois, por lhe aparecer, cumprimentos, frases de circunstância, tudo muito pela superfície, bastavam os olhares para se compreender a desolação pressentida, filhos e pais, a partir de certa idade, simplesmente não devem coabitar, antagónico à ordem natural do existir, as circunstâncias levaram-na a desgraçadamente regressar ao ninho materno (se assim se pode designar), apesar das vincadas diferenças entre elas, quando dali partira, há cerca de quinze anos, afirmara “Só aqui regresso, para vos visitar…”, o pai ainda presente, em verdade, a frase era-lhe dirigida, entre elas sempre vincadas diferenças, a vida e o seu enlear levaram-na a capitular quantos dos seus valores? Contra os desígnios maternos, juntou-se a um sujeito mais velho, divorciado, pai de dois filhos, a mãe incessantemente lhe repetia (“Casar rima com alguma segurança, juntar é de uma total insegurança”), ela prontamente rebatia com conceitos oníricos de Felicidade e Realização, a mãe respondia (“Casar rima com alguma segurança, juntar é de uma total insegurança”), passados oito meses, anuncia aos pais a sua gravidez, vendia viagens na agência do sujeito, aí se conheceram, embora detestasse fazer as malas, aqui se vislumbrava uma primeira fissura que não passou despercebida ao atento olhar materno, ele sempre prontinho para o próximo destino, assim que soube da gravidez aparentou entusiasmo, a paternidade não lhe era estranha, não é possível, a quem está de fora, percepcionar a força e magia dos invisíveis laços que levam um homem e uma mulher a caminhar na mesma direcção, oito semanas depois de anunciar aos pais a sua gravidez, certo final de tarde, a olhar os sapatos, num murmúrio, comunica-lhes que não vingou, o médico, por precaução, desaconselhou novas tentativas, o problema era dela, estrutural, o pai abraçou-a prontamente, a mãe questionava a razão de a filha ali estar sozinha a dar-lhes tal notícia, pensou em questioná-la onde estava o sujeito, a emoção da cena fê-la silenciar-se, há muito não via pai e filha tão irmanados na dor, sabia do seu sonho de ser avô, agora, nesse final de tarde, esfumado, não conseguiu levantar-se e abraçar a filha, o marido já o fizera por si, permaneceu sentada e emitiu frases de ocasião, o facto de a filha ali estar só, a dar-lhes tal notícia, apenas lhe causava repulsa, em verdade, nem conseguia fitá-la,  não era também seu objectivo ser avó, tal como mãe, daí só ter aceitado o facto por uma vez, tudo fez para que não se repetisse – quando lhe puseram aquela pequena criatura nos braços, enrugada, ruborescida, que se contorcia como um idoso, em busca de uma posição que lhe pacificasse ossos e articulações, olhou-a como uma estranha, ainda procurou, em si, de todas as formas possíveis, ligar-se àquele diminuto ser que segurava, um espelho, algo seu por ali derramado, nada, essa foi a verdade, nada, por si ecoaram frases ocas repetida e exaustivamente propaladas (“É um momento único! Inexplicável! Tornamo-nos logo outras… A vida muda naquele segundo… Deixamos de importar, só o bebé… Até o nosso respirar muda… Nada de iguala àquele instante em que nos depositam o bebé nos braços… Vale por uma vida! Não se encontram palavras à altura de tal sentir…”), ela ainda procurou, de todas as formas possíveis, ligar-se àquele diminuto ser que segurava, um espelho, algo seu por ali derramado, nada, essa foi a verdade, nada –, sentiu padecer de um qualquer inominável mal, foi dos momentos de maior solidão da sua existência, talvez o maior, naquela madrugada, com a bebé nos braços, olhá-la e nem vislumbres de um sentir cantado desde tempos imemoriais, um sentir que jamais ousou comunicar, pois, sentiu padecer de um qualquer inominável mal, extenuada, dorida, sapiente de que a dor maior jamais poderia verbalizar, levaria dali uma estranha, nos braços, para casa, uma noite de hospital é a eternidade, quando a luz se apagou, ela só se recorda de virar costas, ao berço plástico ao lado da cama, e rezar pela misericórdia de um sono que a levasse para bem longe dali, apesar de ela jamais verbalizar o seu sentir, com o tempo, a filha bebeu-o, o olhar na direcção da mãe apenas reflectiu esse fel, quando o pai se aproximava, o rosto suavizava-se e o olhar em luz, assim decorreram os anos entre eles, vendo bem as coisas, sob a luz do tempo, a verdade é que o pai não insistiu muito em dialogar por outro filho, é possível que, nos primeiros meses, em múltiplas ocasiões, a visse de costas voltadas para o berço a seu lado, há coisas, na vida, que sabemos, no entanto, incompreensivelmente não queremos acreditar, por conseguinte, atiramos para uma indistinta zona de nós, algures entre indizível e o esquecimento, para continuarmos a respirar com quem vive sob o mesmo tecto, as circunstâncias levaram-na a desgraçadamente regressar ao ninho materno (se assim se pode designar), apesar das vincadas diferenças entre elas, quando dali partira, há cerca de quinze anos, afirmara “Só aqui regresso, para vos visitar…”, o olhar da mãe gritava-lhe essa frase, sentia-o de onde estava, encostada ao balcão da cozinha, de olhos fechados, a saborear, com lentidão, cada quadrado do chocolate que há pouco abrira, precisava daquele doce para equilibrar o tanto fel que a habitava.


 

sexta-feira, 4 de abril de 2025

Que ninguém diga que está bem

 


Aquela frase (Veja lá se cuida de si, homem), hoje, diante de mim, de certa forma, como se tivesse regressado, com um propósito, talvez para me relembrar que, pois, talvez por aí, assim que a ouvi, virei-me, com a esperança de um rosto, embora soubesse que o destinatário do - Veja lá se cuida de si, homem – fosse outro… Não se pode dizer que não gostasse da minha vida, nada disso, casada, dois filhos, ainda por cima um casalinho, ele mais velho três anos, uma casa agradável, nada de luxos, é verdade, mas tinha todas as comodidades, a única coisa que me incomodava um pouco, não assim tão pouco, já que estamos com esta mania das verdades, era aquela sua apatia face a tudo, e sempre com o cigarro, o que me irritava aquele cigarro, apesar de também fumar, e há tanto que o faço, mas nele, não sei porquê, irritava-me, parecia que lhe acentuava aquela apatia, trabalhava como engenheiro numa construtora, era o primeiro a sair de casa, já de cigarro na boca, e parecia-me, não sei se era só uma vaga impressão, que falava cada vez menos, ia para a estação a pé, com o tempo parecia que se divorciara do carro, que para ali ficava a remoer desamparos e costas voltadas, o miúdo (um filho nunca cresce para os pais) também caminhava pelas engenharias, ela ainda indecisa no términus do liceu, eu apanhava diariamente boleia de um casal vizinho para a repartição pública onde trabalhava há quase década e meia, ficava-lhes a meio do seu também diário trajecto, e como havia quotidianamente um recorrente tema de conversa, mas é curioso, sempre a apresentei a terceiros como minha vizinha, ou pelo nome, claro, jamais usei o epíteto de amiga, ela também usava o mesmo diapasão, são as tais zonas de silêncio, onde o verbo se torna uma obscenidade, regressava de comboio, mas nunca por ali encontrei um cigarro a acentuar apatias, depois de fechar a porta de casa, às vezes, ainda a mulher-a-dias por ali, aproveitava para lhe dar indicações para o dia seguinte, bem sei que, entre os vizinhos, nesta altura, houvesse invejas pelo facto de serem outras mãos a cuidar da limpeza do que é nosso, mas não me ralava nada, chegada do trabalho, eu queria era sentar-me na esplanada do café em frente, a folhear as revistas da moda, era disso que eu mais gostava, dava por mim, não raras vezes, durante o dia, a suspirar por este momento, na esplanada do café em frente, a folhear as revistas da moda, tinha a maior parte das vezes como companhia a vizinha que me dava boleia de manhã, sempre a apresentei a terceiros como minha vizinha, ou pelo nome, claro, jamais usei o epíteto de amiga, ela também usava o mesmo diapasão, são as tais zonas de silêncio, onde o verbo se torna uma obscenidade, percebia-se-lhe uma latente fuga da ruralidade, nos gestos, palavras, vestuário, vaticinava-lhe sucesso, no entanto, ainda não terminara, gostava de conversar com ela, não obstante um par de anos mais velha, ouvia-me com um fascínio reverencial, pois, ainda a fuga da ruralidade, o facto de o marido ser vendedor de artigos de construção, só lhe atrasava os passos da fuga, sempre que se referia ao meu era o senhor engenheiro, ria-me interiormente, aquela sua apatia face a tudo, e sempre com o cigarro, o que me irritava aquele cigarro, apesar de também fumar, e há tanto que o faço, mas nele, não sei porquê, irritava-me, parecia que lhe acentuava aquela apatia, confesso que gostava daquela atenção desmedida, do fascínio reverencial, há tanto que ninguém segue assim as minhas palavras, o senhor engenheiro numa apatia crescente, consagrado ao fumo daquele infindável cigarro que tanto me irrita, o miúdo (um filho nunca cresce para os pais) às voltas com a calculadora e com a namorada, a miúda (uma filha também nunca cresce para os pais, ou talvez o faça demasiado depressa) sempre a falar da próxima noite de Sábado, com um sublimado pedido de saída, ou de penteados e mexericos com as amigas, não me lembro da última vez em que, algum deles, se sentou diante de mim, na esplanada do café em frente, por mais que um minuto, confesso que me dava imenso jeito a boleia, todos os dias, de manhã, ficava-lhes a meio do seu também diário trajecto, permitia-me sair uma hora depois de casa, e poupava-me à infindável sucessão de encontrões das viagens matinais de comboio, para retribuir com algo, sentia-me na obrigação de lhe ensinar a melhor direcção na sua fuga da ruralidade, e como eu gostava daquela atenção desmedida, do fascínio reverencial, às minhas palavras, ela só tinha um filho, teria aproximadamente a idade do nosso, a certa altura, falou-se no bairro das companhias, ela jamais comentou alguma coisa, nem nas boleias matinais, nem nos cafés vespertinos, também nunca lhes denotei algo de diferente, nem nos gestos, nem nas vozes, ao contrário do senhor engenheiro, o marido dela coloria as palavras de emoção e graça, quantas vezes, nas boleias matinais, não dei por mim em gargalhadas, tão distinto da austeridade nocturna da nossa casa, apesar de termos uma das primeiras televisões a cores do bairro, ele com o infindável cigarro e a galopante apatia, certa manhã, a boleia atrasou-se, parece que, durante a noite, a polícia os visitou, confirmou-se que o filho com muito más companhias, o bairro expressou a sua desaprovação, felizmente, o meu menino quase a suceder ao pai como senhor engenheiro, o tempo lá continuou o seu caminho de aparência invisível, consegui uma repartição mais próxima de casa, já não precisei de mais boleias, entretanto, abriu um café com uma esplanada bem mais solarenga, optei por essa, e, em verdade, parecia mal que a mulher do senhor engenheiro apanhasse boleia daquele casal com um filho que andava com tão más companhias, depois dessa visita nocturna das autoridades, talvez por vergonha, soube que mudaram de casa, perdi-lhes o rasto, o tempo lá continuou o seu caminho de aparência invisível, foi mais ou menos quando pus os papéis para a reforma, que um amigo nosso se sai com esta Veja lá se cuida de si, homem, a partir daqui, tudo se traduziu numa queda, a magreza, uma crescente palidez, médico, exames, outros médicos, uma frase que tanto me cansou (Tem de largar o cigarro já!), mais exames, mais médicos, a magreza continuava a ganhar terreno, tal como a palidez, o hospital, além dos filhos, a visitá-lo, somente eu e o meu irmão, nem um colega de trabalho, nem um vizinho, nas horas de visita, o omnipresente ponteiro do relógio de parede a relembrar a nossa insuficiência, como se cada segundo fosse um passo que o distanciasse de nós, por vezes, ele na súplica por um cigarro, nesses momentos, quem me dera saber o que fazer, logo eu, que fui ouvida com uma atenção desmedida e um fascínio reverencial, certa tarde, já sabíamos que ele perdera a corrida para o mal que o habitava, era uma questão de dias, informara-nos o médico, numa  indiferença de talhante, saberia ele que o meu marido era um senhor engenheiro? Deambulava eu, pelos corredores do hospital, surda para o que me rodeava, a arrastar uma dor que me puxava para a terra, quando a vi, ao fundo, veio ao meu encontro, enquanto se aproximava, não consegui reprimir um sorriso, afinal, nesta vida, há corridas que se vencem…

terça-feira, 1 de abril de 2025

 


... aprendera há muito que as feridas do corpo revelam a geografia do existir, as feridas da alma espelham a geografia do sentir...

in É isto...

domingo, 30 de março de 2025

É isto…


 

“Não te esqueças: o adjectivo que mais temos de repetir é: Espectacular!”, “Mas para quê? Tu nem gostaste daquilo…,” “Não interessa! Têm de ficar com a ideia de que tivemos umas férias de sonho… Isso é o mais importante! Lembra-te de que, quando cheira a desgraça, todos acorrem como hienas atrás do sangue!,” “Já sabes que não sou bom a inventar… E tu gostaste ainda menos do que eu!”, “E o que interessa? Nada! Se souberem disso, até rejubilam, acredita… Ainda estou para descobrir o porquê daquele maldito tempo! Para mim foi, sem dúvida, inveja! E de alguma daquelas nojentas das minhas colegas… Só pode! Nunca vi! Dois dias com um sol radioso, os outros cinco piores que Dezembro….,” “Começaste logo, mal chegaste, a publicar fotos e fotos…,” “Vens com essa conversa, porquê? Tu nem acreditas nessas coisas de… És sempre o primeiro a rebater essas teorias.,” “Verdade, no entanto, foi tudo muito estranho, mau demais… Lembras-te quando chegámos? O mar num verde-esmeralda, quente, a praia quase deserta, o mundo parecia ceder aos nossos desejos…,” “Claro que me lembro! A foto que tiraste do avião… Acredita, se não fossem as fotos, duvidaria de ter visto por ali o sol! Em verdade, duvidaria de tudo! Já tive pesadelos com aquilo, acreditas? A chuva copiosa e nós enfiados no quarto! Já nem falo da fortuna que gastámos para, no fim de contas, ali experienciar o Inferno!,” “E nem íamos com expectativas assim tão altas.,” “Mesmo, foi o contexto da altura a ditar aquele destino. No primeiro dia, chegámos, largámos as malas e corremos logo para a praia…,” “Eu todo orgulhoso pela minha escolha – apesar de, a montante, estar o contexto da altura… Depois veio o suplício!,” um casal, em lua-de-mel, durante cinco dias não sair do quarto é salutar, bem diferente é um casal, com mais de duas décadas de casamento, ser quase confinado a esse espaço, por chover copiosamente num destino somente de praia, nada mais havia para ver, a hora das refeições acabou por ser o único momento lúdico, o audível jocoso rir da vida, um ano a suspirar por sol, mar e costas voltadas para o relógio, e, chegada essa circunstância, a hora das refeições acabou por ser o único momento lúdico, o audível jocoso rir da vida, no resto do tempo deambularam pelo hotel, certa tarde foram até à piscina-interna, embora, mal entraram no espaço, fossem invadidos pelo cheiro a cloro, a humidade tão típica desse cenário relembrou-lhes Inverno, era nessa altura que ansiavam por piscinas-internas,  jamais em pleno Verão, numa ilha onde nada mais havia para ver, um destino somente de praia, instalou-se-lhes um dilacerante paradoxo, como se a vida reunisse toda a ironia possível e lhes despejasse em cima, ali estavam eles, num rectângulo cheio de água, sob uma luz-artificial, a olhar, pelas rasgadas janelas, o areal chovido, onde, aqui e ali, caminhavam gaivotas chorosas por lhes terem interditado os céus, não conseguiram ali estar mais de trinta minutos, pois, não era Inverno, e se a vida agora lhes despejava em cima toda a ironia possível, antes já lhes despejara demasiado fel, entre um casal não é costume haver muitos gestos simultâneos, o virar costas às rasgadas janelas voltadas para o areal chovido, onde, aqui e ali, caminhavam gaivotas chorosas por lhes terem interditado os céus, sair das águas artificialmente tépidas, os passos até às espreguiçadeiras, pegar nos roupões para se cobrirem e sair, constituiu uma dessas singularidades, nada disseram, mas uma certeza nascia-lhes, se sobrevivessem àquela provação, nada os poderia apartar, de certa forma as grandes tragédias do existir solidificam as relações, são exactamente as pequenas adversidades a esboroar a outrora mais bela união, e, no horizonte da existência, dois dias de sol e cinco de chuva, numas férias, são, sem dúvida, uma singela contrariedade, se lhes perguntassem, hoje, como suportaram aqueles cinco dias, não teriam uma resposta, divagariam, como é habitual quando não se quer revisitar o ontem, a verdade é que foi a esperança – de sol na manhã seguinte – a mantê-los unidos e expectantes, se todos os casais, após uma singela contrariedade, aprendessem este facto, não haveria tantos filhos a olhar estranhos na hora das refeições, de forma imperceptível, ele intuiu o seu desejo de materializar sol na manhã seguinte ao proclamar “Não te esqueças: o adjectivo que mais temos de repetir é: Espectacular!”, sim, ela estava certa, aprendera há muito que as feridas do corpo revelam a geografia do existir, as feridas da alma espelham a geografia do sentir, poucos conseguem observar a ânsia de sol, na manhã seguinte, de cada alma, “Tens toda a razão: como há pouco disseste: Têm de ficar com a ideia de que tivemos umas férias de sonho (…) quando cheira a desgraça, todos acorrem como hienas atrás do sangue!

sexta-feira, 28 de março de 2025

Já não há matinés

 


Ainda há muita coisa desarrumada em mim, apesar de, à superfície, as coisas parecerem normais, agora que ela voltou, após uma vida, foi o que me pareceu, duas décadas, mas, para mim, soube-me a uma vida, pela compreensão da dor, se é que tal é possível compreender, porém, onde, de facto, tudo começou? Vivíamos praticamente juntos, por outras palavras, partilhávamos leitos em casa dos pais de ambos, já trabalhávamos há algum tempo, não havia fim-de-semana em que o tema do casamento não fosse abordado, um pouco como aqueles objectos que repousam numa prateleira, em preces de discrição, mas logo uma mão demasiado inconveniente lhes pega numa ânsia desassossegada, assim se me afigurava a temática do casamento, de certa forma, parecia que queríamos prolongar a doçura irresponsável do namoro, apesar do apelo da idade ser de leito partilhado num só lar, de preferência pago do nosso bolso, pensamentos em berços e comunhões, no entanto, persistíamos naquela doçura irresponsável, olhava-a, por vezes, numa sempre necessária distância, só assim se deve olhar para compreender, e tantas questões se sucediam por mim, mas uma era omnipresente (O que é amar?), respondia-me de imediato, e logo corria para longe de tais dúvidas angustiantes, ninguém, antes de mim, amou de tal forma, e essa certeza pétrea era-me suficiente, contudo, a vida ensina-nos que só compreendemos a corrente da margem, e, nessa altura, eu deixava-me arrastar na doçura irresponsável do namoro, não vi os primeiros sinais de enfado que ela exteriorizava, nas tardes de Sábado, quando me perguntava Não queres mesmo ir a lado nenhum? Ainda insistia Está um dia tão bonito… Eu a querer ficar em casa, deitado, não me apetecia ver ninguém, ela, ainda, num último esforço Anda! Vamos dar uma volta. Não me apetece nada enfiar-me num quarto da casa dos teus pais. Não temos a mínima privacidade. E já não somos nenhuns miúdos! Dissera tudo, se eu soubesse ouvir, mas não, quis ficar, nesse Sábado, de tarde, tal como em muitos passados, fechado em casa, deitado, com ela a meu lado, muitas vezes só víamos televisão, afinal, vivíamos praticamente juntos, e eu achava que tudo tão certo, seguro, já nada fora do seu lugar, Domingo viria, ela, de novo, Anda! Vamos dar uma volta. Não me apetece nada enfiar-me num quarto da casa dos teus pais. Não temos a mínima privacidade. E já não somos nenhuns miúdos! Mas não me apetecia sair, cansava-me ver sempre as mesmas coisas, se uma semana a correr para o emprego, depois a correr na sofreguidão do regresso a casa, para quê, naqueles dois dias, de sabor a tão pouco, sair? Contentava-me com ela ali, a meu lado, muitas vezes só víamos televisão, afinal, vivíamos praticamente juntos, e eu achava que tudo tão certo, seguro, já nada fora do seu lugar, por norma, partia dela a iniciativa de, desde o início, a timidez sempre esteve ao leme do que eu sou, em certa medida, compreendo o porquê daquele desaguar, no meu leito, há uns anos, afinal, só procura uma baía quem se cansou de mares encapelados, houve vozes ansiosas por dar corpo a histórias, enfim, o habitual do circo humano, não liguei, até me falaram de gravidezes que capitularam com a meta à vista, talvez pela dúvida da fonte, pois, mas nunca me interessei por biografias, só me interessava ela ali, a meu lado, muitas vezes só víamos televisão, as semanas tornavam-se meses, que, por sua vez, originavam trimestres, o tempo lá ia no seu passo, ora de idoso, ora de menino, consoante o nosso olhar, até que, numa sexta-feira, o telefone, ela Amanhã não posso ir aí ter. Vem cá uma prima minha que não conheces… Não, não vale a pena… Deixa… Tenho de lhe mostrar Lisboa. Ias-te aborrecer de morte. Não, não vale a pena… Fica sossegado, afinal, amanhã é Sábado, e tu gostas de ficar com a tua televisão… Por isso, deixa-te estar e não te preocupes… Quando chegar a casa, ligo-te, não lhe conhecia primos, muito menos fora de Lisboa, percebia-se-lhe uma pressa na entoação, como o viajante que receia perder o embarque, algures uma voz sussurrava-me que ela se preparava para zarpar rumo a mar-alto, procurei logo silenciá-la, mas insistia, não a consegui calar, apesar da televisão, da tarde de Sábado, eu deitado, mas ela não a meu lado, nessa noite, não sei se chegou a casa, apenas percebi que o meu telefone permaneceu no silêncio crescente da minha angústia, Domingo, assim que a hora me pareceu apropriada, quando as casas dos vizinhos já exalavam torradas e café, eu com o auscultador encostado à orelha, enquanto um som arrastado me dizia que um telefone por mim desejado se fazia anunciar, até que o som arrastado se precipitou na intermitência por ninguém ter acorrido, insisti, insisti, nem pensar em desistir, insisti de novo, tudo se precipitava numa exasperante intermitência, resolvi ir bater-lhe à porta, assim foi, na rua percebi o carro dos pais, apesar da campainha, vezes repetidas, a porta do prédio numa fria indiferença metálica, regressei a casa, essa tarde de Domingo, apesar do sol, pareceu-me uma imensa noite, fechei-me no quarto, assim fiquei, mas a televisão desligada, agarrei-me, para os dias seguintes, a uma ruína de orgulho, se assim se pode dizer, dias depois, tão longos para o sentir que me habitava, pouco antes do jantar, o telefone, não consegui disfarçar a sofreguidão, corri de imediato ao seu encontro, meus pais entreolharam-se no silêncio da compreensão, era ela, desta feita, numa entoação demasiado pausada, falava-me de dúvidas, de incertezas, do cansaço pelos Sábados, de tarde, fechados em casa, cortei a conversa, ainda hoje me surpreendo pelo arrojo Conheceste alguém? Afinal já conhecia, e eu também, um amigo do irmão, advogado, parece que gostava de viajar, não, Sábados de tarde sempre fora, de um lado para o outro, desconhecia por inteiro a grelha televisiva, cama só de noite e parece que dormia pouco, pois, e há muito que tinha a sua casa, de novo, agarrei-me a uma ruína de orgulho Tens a certeza? A resposta dela, Sim, soube-me a mil golpes, uma forma de inocência acabara de se me morrer, num último fôlego, disse-lhe Felicidades…

Quantos rostos saem e entram nas nossas vidas? Os que partem na derradeira viagem, permanecem em nós, regra geral, consoante o legado da memória, com uma dignidade intocável, os outros, os rostos da circunstância, enfim, acabam por sucumbir ao momento, outros se sucedem neste incessante dia após dia apelidado de existência, e ainda há os que nos ferem de vazio, os tais que nos retiram, friamente, uma forma de ver o mundo, o rosto dela demorou vinte e dois anos a reentrar na minha vida…

Entrou, de bicicleta na mão, na minha loja de reparações de, isso mesmo, bicicletas, os Sábados, de tarde, fechado em casa, a ver televisão, deixaram de ter um sentido, ainda hoje não sei se foi de propósito, creio que sim, achei curioso a familiaridade com que me tratou, parecia retomar um diálogo algures interrompido, confesso que me soube bem, enquanto ela falava, parecia que uma parte de mim se reconstruía, sem me aperceber, caminhávamos passeio fora, apesar dos seus três filhos, do ainda marido advogado, que já não viaja assim tanto, parece que semeou demasiadas dívidas, às quais somou um desfalque, percebo agora o porquê da bicicleta, de uma certa resignação pela face, antes de se despedir, olhou-me e disse Amanhã é Sábado, não é?