Livros do Escritor
domingo, 28 de novembro de 2021
sábado, 27 de novembro de 2021
quinta-feira, 18 de novembro de 2021
segunda-feira, 15 de novembro de 2021
Não te esqueças de regressar
Chegou aquela hora, que sempre
queremos adiar, com mais um copo, uma palavra, um vislumbre, rápido ou
demorado, um qualquer passo, de nos sabermos irreversivelmente sós. É, de
facto, da nossa essência, esta orfandade devidamente silenciada pelos ululantes
gritos do mundo. Ela ainda na cozinha, pano da louça na mão, sempre algo fora
do sítio, como se as coisas resistissem, de forma obstinada, a uma arrumação
sentenciada. A casa já em silêncio. Apenas um murmúrio visual proveniente da
televisão da sala. Não chega para lhe perturbar a corrente do pensar. Mais um
garfo, um prato, um copo, aquele banco que insiste em fugir de debaixo da mesa,
a porta do armário da louça que não fecha, desliza num lamento infantil, por
fim, ela a sós com o pano, nada fora do sítio, talvez ela sem um lugar, ou
tê-lo-á perdido? Olha pela janela. O candeeiro, que brota do passeio, não chega
para disfarçar a noite. De vez em quando, o som de um carro, um latido de
abandono, passos, vozes, a televisão de cima sempre demasiado alta, de novo um
carro, ela, agora, com a pano pelo ombro direito, como se um despojo de
qualquer coisa de que se afastou, dali vê a estação, sim, dali vê aquilo,
embora já veja numa saudade da dor, porque, enquanto a dor gritava mais alto
que a sua voz, ele, de certa forma, ainda vivia em si, agora socorria-se
daqueles vestígios de tempo perpetuados em rectângulos plásticos depositados em
camilhas e prateleiras de armários, para relembrar que o tempo, por vezes,
corre ao contrário. Na plataforma da estação começa a haver um ajuntamento de
pontos vermelhos tremeluzentes, que vagueiam numa indolência de amanhãs
distantes, aproxima-se, neste momento, um resfolgar metálico personificado numa
luz ímpar que rompe a noite para anunciar movimento. Ela fecha a janela num
repente. Vira-lhe as costas. Retira o pano do ombro, deixa-o sobre a mesa, vai
até à sala, o marido dorme, no sofá, enlevado pelo murmúrio visual de uma
qualquer esterilidade diária, o jornal a cobrir-lhe as pernas, a boca
ligeiramente aberta, como se lhe comunicasse o porquê de silêncios, ela inveja-lhe
o sono, a quietude, ela abre mais os olhos do que os fecha, desde aquela tarde,
era Verão, há quanto? Sempre há demasiado… Sempre há tão pouco. Daquela tarde,
apenas rectângulos de momentos, desta vez, não depositados em camilhas ou
prateleiras de armários, mas no seu pensar. E aquele som, como se um grito de
fim… Estava naquela precisa janela, a plataforma da estação colorida de um ar
marítimo, debruçava-se para o estendal, povoado de vestígios de areia e mar,
ouve aquela voz que se alterava ligeiramente sempre que pronunciava mãe, ou talvez fosse do seu sentir, como
se repousasse para inspirar, sim, a mãe é sempre uma margem, ela em sorrisos
àquela voz, ia sair de novo, um telefonema daquela rapariga, sim, aquela com
que se demorava, há já algum tempo, duas ruas acima, ainda não a apresentara,
talvez por pudor de um sentir não confessado, mas mãe nunca precisou de
confessionário, antes de sair, Até já (Será
este o tempo da Eternidade?), capacete
branco na mão, ela ainda a completar o puzzle do estendal, a vê-lo lá em baixo,
a subir para aquela montada do hoje, um grito nervoso a ecoar pela rua, uma mão
que se levanta ao mesmo tempo que um olhar, como se Até já, ela retribui do estendal, num sorriso orgulhoso e comovido
pelo seu cavaleiro da contemporaneidade, o puzzle já completo, ela a regressar
para dentro, o grito nervoso afasta-se, antes da sala, antes de abandonar, por
completo, a cozinha, algo a imobiliza, como se compreendesse o precipício
constante de nome vida, ecoou terror daquela estação, pelos ares cálidos do
entardecer estival, ela siderada pelo abismo revelado, tiveram de vir buscá-la,
dispensou o verbo alheio, o vazio de expressões desconexas e gastas como os
paralelos de uma cidade sempre cinzenta. Durante esses tempos, viajou com a
surdez. Talvez por isso, ainda viva. Tanto foi dito… A pressa de chegar duas
ruas acima, talvez quem se demore num olhar se esqueça do mundo, houve quem
falasse da lentidão, sempre demasiada, das cancelas ao descer, mas, quantas
vezes transpôs ele aquela barreira? Porventura, demasiadas… Daí o cansaço. Só
saiu de si, por essa altura, quando, dias depois, uma mão depositou algo no seu
bolso, numa manhã de olhares baixos e terra revolvida. A mão deixara-lhe dois
rostos, sorridentes, como se acariciados por uma brisa tépida vinda de um país
de nome futuro. Antes de partir, aquela mão ainda apertou a sua. Há lugares
onde as palavras não entram.