Livros

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segunda-feira, 24 de junho de 2024


 

Bem dizias que o tempo não existe, não te cansavas de o repetir, lembras-te? A memória é a melhor prova disso, um fechar-de-olhos e regressamos àqueles instantes que nos fazem suspirar ou desejar jamais ter existido…

in O lento esvoaçar das cortinas pela manhã

sábado, 22 de junho de 2024

É mais rápido do que julgas


 

Certa tarde, minha avó olhou-me, como se me lê-se os pensamentos e murmurou “É mais rápido do que julgas”, eu, perplexo, não pelo facto do dom de minha avó ler os pensamentos, há muito o sabia, mas por “É mais rápido do que julgas”, percebeu que lhe observava os sulcos gravados, pela vida, no rosto, limitei-me ao silêncio, a sua voz regressou “Num instante, e estás aqui… Apenas um abrir e fechar de olhos… Vais ver!”, tudo, nesta vida, tem o seu tempo, e a compreensão de “É mais rápido do que julgas” não fugiu a esta regra, após ouvir esta frase, dita por minha avó, não sei porquê, deu-me para olhar o céu, era, sem dúvida, mais azul no ontem, as nuvens mais brancas e esparsas, a lentidão com que desfilavam, diante do meu olhar de então, contradizia “É mais rápido do que julgas”, no fundo, eu procurava aquietar o terror que a frase me suscitara, num canto de mim percebera-lhe a veracidade, andei, durante dias, a ruminar esta questão, cheguei a ter pânico de fechar os olhos, por, ao reabri-los, ver sulcos gravados no meu rosto, é comum ouvir-se que o tempo é um grande Mestre, continuo com as minhas dúvidas sobre esta sentença, e são cada vez mais firmes, afinal, há certezas que nunca me largaram, como o céu era, sem dúvida, mais azul no ontem, as nuvens mais brancas e esparsas, a lentidão com que desfilavam, diante do meu olhar de então, contradizia “É mais rápido do que julgas”, embora esta frase, dita por minha avó, como se me lê-se os pensamentos, a cada dia faça mais sentido, é um facto, tudo é bem mais rápido que o nosso entendimento, de repente, já vislumbramos a porta de saída, e à nossa volta cada vez menos rostos familiares, não fossem as cicatrizes no corpo e na alma a testemunhar a veracidade dos factos, e talvez questionasse a realidade do passado: Um sonho? Uma ilusão? Uma fantasia? A verdade é que, a cada dia, o vamos construindo e desconstruindo mediante as nossas volições, mas sempre com o desejo sublimado de justificar a nossa caminhada pelo aqui: “Sim, valeu a pena!” Será que valeu? A esta questão só cada um, de si para si, poderá responder: há respostas onde a mentira é supérflua: este é um caso gritante! Por acaso, se esta questão fosse colocada a minha avó, desconheço se alguém o fez, saberia a sua resposta: “Sim, valeu a pena!” Como o sei? Muito simples, pelo seu orgulho em cada sulco gravado, pela vida, no rosto, nunca os maquilhou, procurou ocultar, nada, deixou que o mundo os visse como se uma vitória face ao acontecer desordenado das coisas, quem busca incessantemente disfarçar as pegadas da vida, em si, talvez vacile na justificação à sua caminhada pelo aqui, hoje já não receio abrir e fechar os olhos, a minha vez chegará de abandonar o palco, já faltou mais, se valeu a pena? Para trás ficam os livros, comigo levo os momentos, esses são intraduzíveis, nem palavras, músicas, imagens, obedecem a uma outra linguagem: o sentir: aqui há um pulsar distinto: é da individualidade de cada um… Há frases que não basta ruminar para se compreender, temos de caminhar e caminhar, e, num certo ponto, de preferência num lugar cimeiro, parar, olhar a distância percorrida, fechar os olhos e esperar por uma voz “É mais rápido do que julgas”, pois, sem dúvida, como é verdade, por vezes, dou por mim a olhar com compaixão os que para aqui caminham há pouco, desconhecem o facto de “Num instante, e estás aqui… Apenas um abrir e fechar de olhos… Vais ver!”, coitados, não tiveram o privilégio de ter uma avó que lhes ensinasse a essência do existir, ainda hoje, volta e meia, não sei porquê, dá-me para olhar o céu, era, sem dúvida, mais azul no ontem, as nuvens mais brancas e esparsas, a lentidão com que desfilavam, os momentos, pois, esses são intraduzíveis, habitam no ontem, onde o céu era, sem dúvida, mais azul.

quinta-feira, 20 de junho de 2024


 

... sabes, certas luzes acompanham-nos há tanto que tendemos a desvalorizar, mas se nos faltam, compreendemos a verdadeira dimensão do seu iluminado horizonte!

in O lento esvoaçar das cortinas pela manhã


terça-feira, 18 de junho de 2024

segunda-feira, 17 de junho de 2024


 

... sabes, gostava que esta noite não encontrasse a manhã.

in O lento esvoaçar das cortinas pela manhã


terça-feira, 11 de junho de 2024

O dia em que devia ter partido


 

Faz hoje anos que devia ter partido daqui, nem todos se podem gabar de ter uma data assim na sua biografia (Faz hoje anos que devia ter partido daqui), é verdadeiramente o único dia do calendário que me inquieta por antecipação, é natural: faz hoje anos que o Terror se me gravou na carne! Se me contassem, na manhã desse dia, como terminaria, creio que responderia com uma gargalhada, há uns tempos escrevi: “Há dias que nunca deviam ter existido”; baseei-me claramente neste, o Sentido do hoje é o absurdo do amanhã, passado todo este tempo continuo a achar que devia ter partido nesse dia, há ideias de que, felizmente, ninguém me consegue demover, a percentagem de sobrevivência ao sucedido, e no contexto em que foi, era, de facto, mínima, contudo, lá houve alguém que soube como proceder para salvar uma vida, a minha, não obstante tanto sujar-se de sangue, abençoo ou amaldiçoo? Sempre me inclinei mais para a última, é a verdade, não sei quem é, onde vive, o que faz, não deixa de ser curioso: um dos vultos mais decisivos da minha biografia é um ilustre estranho! E continuará a ser, talvez seja melhor assim, abençoo ou amaldiçoo? Se me dessem a escolher, se efectivamente tivesse poder de decisão, optaria inquestionavelmente pela partida nesse funesto dia, também há uns tempos escrevi que “a Dor só nos anoitece a visão das coisas, pouco mais…”, há quem defenda ser uma grande mestra da vida, enfim, é possível que não lhe conheçam o Terror, é fácil afirmar lugares-comuns de uma segura distância do acontecer, o problema começa precisamente quando o Terror nos engole, a verdade é que nunca gostei da expressão “sobrevivente”, um eufemismo para quem teve a “sorte” de escapar a algo, ou o “azar”, pois, uma perspectiva de acasos, e como eu os detesto…! Faz hoje anos, como é natural, que se me quebrou a Confiança com a realidade, se me contassem, na manhã desse dia, como terminaria, creio que responderia com uma gargalhada, jamais as coisas podiam regressar ao antes, até hoje, nunca houve quem tivesse o arrojo de colocar uma questão essencial: “O que aprendeste com esse Terror?” Há uns anos, diria: “Nada!” Hoje respondo: “Anoiteceu-me a visão das coisas…” Isso tem algum aspecto positivo? Nenhum! Tornei-me numa pessoa melhor? Não! A amargura torna alguém melhor? A compreensão de que se atropelam para nos ver caídos e se escondem para não nos verem guindados é positiva para alguém? Não me parece, quando não há poder de escolha, somos simplesmente engolidos pelo acontecer, o pensar nem chamado é para a arena da vida, e, quando estamos caídos, os imbecis em volta multiplicam-se com uma velocidade desconcertante, parte de mim faz hoje anos que morreu, a morte de um sonho é também a nossa morte, e quantos sonhos não morreram neste dia há uns anos? Demasiados, sem dúvida, demasiados… Faz hoje anos que devia ter partido daqui, nem todos se podem gabar de ter uma data assim na sua biografia (Faz hoje anos que devia ter partido daqui), é verdadeiramente o único dia do calendário que me inquieta por antecipação, é natural: faz hoje anos que o Terror se me gravou na carne! À minha volta vi manifestações de nobreza e simultaneamente o mais vil e torpe da humanidade, tudo entrelaçado numa harmonia inquietante, como se à luz se sucedessem as trevas, e vice-versa, até “à consumação dos tempos”, se parte de mim morreu nesse dia, jamais posso ser considerado um sobrevivente, sei que desejava ter partido, nem olharia para trás, no entanto, lá houve alguém que soube como proceder para salvar uma vida, a minha, não obstante tanto sujar-se de sangue, abençoo ou amaldiçoo? Sempre me inclinei mais para a última, é a verdade, não sei quem é, onde vive, o que faz, não deixa de ser curioso: um dos vultos mais decisivos da minha biografia é um ilustre estranho! Há balanços que nos são vedados, este é um deles, os meus desejos aqui não encontram porta por onde entrar, cabe a quem me acompanha os passos decidir se abençoa ou amaldiçoa quem, há uns anos, tanto sujou as mãos de sangue para me adiar a partida…

(10/06/24)

domingo, 9 de junho de 2024

Os irmãos Chihuahua


 

Hoje resolvi dedicar estas linhas aos irmãos chihuahua, perguntar-se-á o leitor: quem, afinal, são os irmãos chihuahua? São dois gémeos, nem por acaso tiraram o mesmo curso, nem por acaso seguiram a mesma profissão, o tempo e a vida lá ajudaram a distingui-los: um inchou, inchou, o outro manteve-se esquálido… Bom, tenho de ir mais devagar, nem o contexto destas duas criaturas apresentei, conheci, há uma década, o chihuahua-esquálido, achei graça ao sujeito, fazia do politicamente incorrecto o seu estandarte, isso agradou-me, há muito que, essa forma tirânica de nos vigiarmos mutuamente, me causava um asco visceral, o sujeito lá debitava as suas baboseiras, com um aparente à-vontade, talvez por ninguém lhe dar crédito, vivia sozinho, não obstante ter dobrado meio-século de existência, sempre nutri compaixão pelos sós, a sua fragilidade gritava-se-lhe na descoordenação-motora, para além, claro, da extrema magreza, todavia, volta e meia, era vê-lo elevar a voz por uma qualquer causa, risível a figura, apenas e só, um chihuahua-enraivecido a rosnar atrás de um qualquer portão, limitava-me a rir, apenas e só, era habitual chegar, sobretudo de tarde, ao trabalho, vermelhusco e alegre, a frustração lá teria de ser olvidada, e uns copitos são a viagem mais rápida e barata para o efeito, certa vez, contaram-me que, na rua, se exaltou com um taxista, na altura, confesso a minha apreensão, se alguém atingisse aquela amostrazita de homem, durante semanas não ouviríamos o politicamente incorrecto, afirmava-se através de uma falsa generosidade e pelas leituras, fazia gáudio em andar sempre com um livro debaixo do braço (bem diz o povo: “Um BURRO carregado de livros é um doutor”), no entanto, se instado a discorrer sobre uma temática, o verbo não lhe fluía – a Retórica é uma qualidade inata – e o seu egozito é inversamente proporcional à sua volumetria, a verdade é que só tinha algum palco aquando das baboseiras, mesmo aí com uma generosa dose de compaixão, a certa altura, enamorou-se de uma colega casada, apesar de muitos duvidarem da sua real orientação, havia quem desconfiasse daquele andar trôpego, de uma segura distância, apercebi-me da total inabilidade do nosso chihuahua para o elemento feminino, esta, claro, foi-se aproveitando da sua falsa generosidade, uma sujeita fútil e completamente estéril de ideias, o chihuahua não a largava, mas como é sabido jamais mordeu, profissionalmente é mais um frustrado que para ali anda num ontem sempre igual ao amanhã, neste ponto só me questiono: Como se pode exercer uma profissão onde o elemento central é precisamente a Retórica?! E o verbo que jamais lhe flui, saliva a cada sílaba, cospe a cada palavra emitida, o chihuahua-gordo, que inchou, inchou, ao longo da vida, num certo momento, lá conseguiu escapar-se das funções que também o obrigavam a fazer uso da Retórica, com este felizmente pouco contacto tive, embora fosse o bastante para aferir a escassez de carácter, como dizia, escapou das funções que também o obrigavam a fazer uso da Retórica, e foi para um lugar onde avaliava aqueles que jamais ousaram fugir do uso da Retórica, aqui chegado, só posso concluir que o Sentido há muito partiu deste lugar: um incapaz a avaliar os capazes?! As palavras fogem-me… Alguém, das relações do chihuahua-bêbedo, ao aperceber-se de que era um incapaz a avaliar os capazes, tratou de o meter na ordem, o chihuahua-gordo, tal como o irmão-vermelhusco, só rosnava, e sempre atrás de um portão, contudo, o bêbedo tomou as dores do irmão e cortou relações com o tal que se apercebera de que era um incapaz a avaliar os capazes, a vida lá vai ensinando quem deve ou não continuar a sua marcha a nosso lado, sei que se riu, pela infantilidade do gesto do chihuahua-bêbedo, por, no fim de contas, nenhum livro lhe ter ensinado que era um incapaz a avaliar os capazes, que o factor sanguíneo nem tudo justifica, que a sua figura só suscita compaixão, que não se alcança o coração de uma mulher com falsa generosidade, com um verbo que jamais lhe flui, a salivar a cada sílaba, e a cuspir após cada palavra emitida, talvez ainda não tenha encontrado os livros certos, embora seja sabido que são os livros que nos encontram, é possível que, quando este lhe batesse à porta, estivesse distraído a debitar baboseiras para se esquecer de si.

(09/06/24)

 

sábado, 8 de junho de 2024

Aqui me tens só para ti


 

O que nos guarda o amanhã? Esta questão acompanha o homem desde o seu primeiro passo por estes lados, hoje ela vive num quartito alugado em casa de uma conhecida, antes chamava-lhe amiga, hoje nem pensar, é sabido que familiaridade rima com hostilidade, se antes, com a distância, amigas, hoje apenas se suportam, uma precisa do quartito, a outra da renda proporcionada pelo mesmo, assim sempre se amparam, não obstante as invectivas silenciadas, quando ousa debruçar-se sobre a janela do passado, ela e o marido, de mão-dada, aos Domingos, em passeios por Sintra, ele chegava a segredar-lhe Nenhuma te chega aos calcanhares! Nenhuma te chega aos calcanhares!”, em momentos assim, ela sentia tactear os céus, agora, num quartito alugado em casa de uma conhecida, antes chamava-lhe amiga, o momento alto do seu dia é a ginástica, só tem de atravessar a rua, há lá outras a partilhar a sua circunstância: os maridos partiram, na viagem-final, e elas por aqui ficaram, num desamparo sentido; costumam ir antes da hora de almoço, ela e a conhecida, antes chamava-lhe amiga, era dois ou três anos mais velha, embora, aos seus olhos, parecesse haver, no mínimo, uma década, a separá-las, e a ginástica, o momento alto do seu dia, só o comprovava, ela fazia todos os aparelhos, chegava até a dançar, para espanto dos presentes e do responsável, enquanto a outra se limitava a arrastar, de exercício em exercício, como se de uma Via-Sacra se tratasse, num desses efusivos momentos de dança, não lhe passou despercebido o olhar-guloso do responsável, um jovem da sua idade, afinal, a idade é só um número, com um porte-atlético considerável para tal soma do tempo, não fosse o responsável pelo espaço-desportivo, não, não era impressão sua ou uma efabulação por há tanto não sentir o calor masculino, não lhe passou despercebido o olhar-guloso do responsável, a verdade é que andou dias e dias a matutar naquele olhar lascivo que lhe percorreu as linhas, talvez por simultaneamente lhe aquecer o sentir, afinal Sintra é uma miragem, de um passado tão, mas tão, lá atrás, por vezes tem de apelar aos esforços da imaginação para o reerguer, e à frase que a fazia tactear os céus “Nenhuma te chega aos calcanhares! Nenhuma te chega aos calcanhares!”, as suas danças, entre exercícios, multiplicaram-se, tinha de confirmar a gula de um olhar, já que a inveja das outras há muito um facto consumado, nem linhas, nem energia, problema delas, de certa forma, aquele olhar fê-la dançar (há quanto não se sentia assim?), como se lhe murmurasse, à sua maneira, “Nenhuma te chega aos calcanhares! Nenhuma te chega aos calcanhares!”, durante uma das suas esfuziantes danças, aproximou-se dele, estava vigilante, num dos cantos da sala, estendeu-lhe as mãos, para lhe acompanhar os passos embalados pela melodia, que, em verdade, só ecoava em si, contudo, ele sorriu e permaneceu onde estava, ela leu-lhe uma timidez em flagrante contraste com a gula do olhar,  nesses breves segundos, tomou uma decisão, não, não podia adiar mais, se ele reticente, vencido pela timidez ou pela responsabilidade profissional, teria de ser ela a dar o primeiro passo, nesse dia, quando regressava a casa com a conhecida, antes chamava-lhe amiga, sob o pretexto de algo esquecido, regressou, ele ainda lá estava, sozinho, a ultimar pormenores para o fecho durante a hora de almoço, guiada por um calor súbito e demasiado, ela sentiu-se impelida a extinguir definitivamente as labaredas daquele guloso-olhar, entrou, de forma sorrateira, e subiu para o balneário-feminino,  só o factor surpresa poderia derrubar tamanha timidez, foi a sua conclusão, aí chegada, desnudou-se da cintura para cima, o resto viria por acréscimo, e gritou o seu nome, ouviu uns barulhos em baixo seguidos de um galope escada acima, não podia estar mais correcta, aí vinha ele ao seu encontro, como se, desde a primeira vez que o seu olhar salivou perante tais linhas, ansiasse por este momento, a verdadeira dança seguir-se-ia dentro de momentos, fechou os olhos e entreabriu os lábios, agradeceu, em súplica, nesses instantes, não haver, em si, vestígios de Sintra, ela e o marido, de mão-dada, aos Domingos, em passeios, o calor ameaçava asfixiá-la, há tanto lhe falta alguém que a faça tactear os céus, ele bate à porta, apesar do galope escada acima, confirmou a sua timidez, sabia que, àquela hora, só lá estariam os dois, como se tudo convergisse para o seu encontro, não, não podia esperar mais, ela correu para a porta, abriu-a, estendeu-lhe a mão e puxou-o para dentro, do lado dele, a incredulidade da situação: uma idosa, com os seios a tactear o umbigo, a avançar, de língua de fora, ao seu encontro, num gesto irreflectido, ergueu as mãos, como se em defesa, quase gritou “Desculpe, mas nem mais um passo!”, em verdade, quanto ele não daria para vivenciar tal constrangimento, há coisas, nesta vida, que nem adicionam, nem subtraem, são aquelas que nada ensinam, esta foi uma das tais, recuou, sempre de mãos levantadas, e saiu; do lado dela, é um homem às antigas, digno, com valores, antes de qualquer coisa, quer convidar-me para um passeio, em Sintra, de mãos-dadas, pois, é isso, afinal, sempre vou tactear novamente os céus, agora, quando sair, ele está a preparar-se para me murmurar ao ouvido: “Nenhuma te chega aos calcanhares! Nenhuma te chega aos calcanhares!”

Pedro de Sá

(08/06/24)

quarta-feira, 5 de junho de 2024


 

... sabes, é uma pena ser-nos vedada a possibilidade de recuar no tempo, tantos e tantos erros para emendar, parece que estamos num jogo sem vidas suplentes, onde cada erro se grava na carne ou no espírito…

in O lento esvoaçar das cortinas pela manhã


 

segunda-feira, 3 de junho de 2024

Falem-me de geopolítica


 

Desde muito cedo, um dos chavões mais repetidos por meus pais era: Vê lá se ficas um homem! Vê lá se ficas um homem!” Repito, desde muito cedo, eu para ali ficava, a ruminar a frase (“Vê lá se ficas um homem!”), embora sempre aquém, talvez, do desígnio paterno, em verdade, creio que nem eles o alcançavam, saía-lhes com a naturalidade possível do contexto em que se lhes impunha chamar a atenção por qualquer coisa, e, claro, restaurar a sua autoridade, esta introdução não é aleatória, vem precisamente ao encontro da figura a quem hoje dedico estas linhas, nem por acaso partilhamos a mesma paixão clubística, era vê-lo, aquando das vitórias, em risos, as habituais larachas aos adeptos adversários, o imperativo desdém, enfim, o habitual prato-completo destes contextos, não raras vezes até se apresenta vestido, com ar triunfal, com a camisola do vitorioso, porém, as vitórias começaram a escassear e o título foi para um adversário, desde então, nem vislumbres de risos, das habituais larachas aos adeptos adversários, do imperativo desdém, pois, o habitual prato-completo destes contextos, e de se apresentar vestido, com ar triunfal, com a camisola do vitorioso, como eu o compreendo, não partilhássemos a mesma paixão clubística, há uns dias, sucede que o adepto de um clube adversário, com quem mantinha uma deveras relação cordial, sublinhe-se, ousou, em risos, lançar-lhe uma laracha, desde então, só foi contemplado com mutismo, semblante carregado e costas, uma das piores coisas, da vida em sociedade, é indubitavelmente o fenómeno dos mal-entendidos, neste particular, e por honestidade intelectual, releve-se a generosidade de uma boa-alma que se lançou na dolorosa empreitada de esclarecer o porquê de mutismo, semblante carregado e costas, quando antes uma deveras relação cordial, a resposta não tardou, no fundo, parecia aguardar pela questão para, por fim, desabar: “O quê? Não falar com esse?! Mas estamos a brincar ou quê? Tanta coisa séria a acontecer no mundo e vem-me falar de bola?! Mas está a gozar??? Com uma guerra a decorrer, preocupa-se com coisas de putos?! Falem-me de geopolítica, ouviste? Falem-me de geopolítica! Eu tenho três licenciaturas! Falo de qualquer assunto com quem quiser: Filosofia, Literatura, Religião… Três licenciaturas! Falem-me de geopolítica! Agora, de bola, sinceramente…” Tinha, por hábito, agarrar o braço do interlocutor, como se para dar mais ênfase a cada sílaba proferida, essa boa-alma que o interpelou foi, desde logo, acometida de uma dúvida: no espaço daquela conversa, quantas mais licenciaturas havia tirado? Uma questão pertinente, atendendo a tão demiúrgica personagem… Seguiu-se o espanto se, de facto, quem tanto apelou a que “Falem-me de geopolítica! Falem-me de geopolítica!”, seria o mesmo que, há umas semanas, aquando das vitórias, em risos, as habituais larachas aos adeptos adversários, o imperativo desdém, pois, o habitual prato-completo destes contextos, não raras vezes até se apresenta vestido, com ar triunfal, com a camisola do vitorioso, como as coisas mudam no espaço do viver… Em verdade, essa boa-alma, cumprido o seu papel conciliador e de emissário da paz, ficou deveras confusa, persistiu, durante uns dias, de calculadora na mão, a estimar quantas mais licenciaturas a demiúrgica personagem teria somado… Que fenómeno! De facto, como é possível ser importunada com minudências como a bola! Há sujeitos que jamais conseguem tanger, quanto mais vislumbrar, o sublime da existência, é o caso desse adepto de um clube rival a importunar o nosso demiurgo, quantas licenciaturas lhe foram vedadas só nesse espaço de aborrecimento? Desde então, quando lhe falam de bola, responde com pérolas como: “Estou-me a c…!” Maravilhoso, eloquente, confesso que daria para mais uma tese, pelo menos o título de uma: “Estou-me a c…!” Desde muito cedo, um dos chavões mais repetidos por meus pais era: “Vê lá se ficas um homem! Vê lá se ficas um homem!” Repito, desde muito cedo, eu para ali ficava, a ruminar a frase (“Vê lá se ficas um homem!”), hoje já não estou aquém, responderia: “Falem-me de geopolítica! Falem-me de geopolítica!” Creio que deixaria os meus pais em espanto, e se, durante essa sua perplexidade, somasse, no mínimo, três licenciaturas, atingiria o zénite, afinal, nunca houve questões sem resposta, pode ser que o meu clube dê a volta, e, num certo lugar deste mundo, alguém volte a ser visto engalanado com a camisola do vitorioso.

domingo, 2 de junho de 2024


 Terá Deus desistido dos homens?

in O lento esvoaçar das cortinas pela manhã