Livros

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quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Tem de haver uma Biblioteca no Céu



Conheci-o já adulto. Sim, porque só conhecemos alguém, quando compreendemos as suas paixões. E para compreender as do meu Tio, levei o meu tempo. E esse exigiu a maioridade. Recordo-me, com nitidez, a sua forma de receber. Com elevada cortesia, convidava-nos a entrar, e apontava-nos, com a sua mão direita, o fundo do extenso corredor à direita. Aí chegados, entrávamos no seu mundo: um mundo de papel, de silêncio, de saber, de sonhos… E foi aí, que me deu a conhecer o sublime da essência humana. Sentava-se, na sua secretária, diante de mim, e dissertava acerca da temática mais relevante para o momento. Por vezes, parava, para ir em busca de um qualquer texto que, oportunamente, ilustraria, na perfeição, as suas palavras. E como era extenso o seu universo de papel! O seu olhar, acompanhado pela mão, percorria lombadas e lombadas e lombadas. Por fim, regressava sempre, num triunfo silencioso, com o volume desejado. Sentava-se. Olhava o livro com uma familiaridade quase orgânica. Como se este fosse uma extensão de si. E, no fundo, era-o. Sabia sempre onde o abrir. Regra geral, os seus livros estavam comentados, sublinhados… E então, procedia à leitura de um excerto, com a singularidade de uma voz que tinha o dom de animar caracteres impressos, como se, em vez de os decifrar, lhes desse a vida. Como eu gostava de o ouvir declamar Pessoa! E tantos outros… Acredito, no meu íntimo, que o próprio Pessoa gostava de ouvir as suas palavras através do meu Tio. Ainda hoje recordo quando declamou o Aniversário, de Álvaro de Campos. A cada verso, senti-me a mergulhar naquele universo, numa viagem ao tempo em que festejavam o dia dos meus anos. E muitos, muitos, outros… Sim, a lista é extensa, assim como a sua invulgar cultura. Sabia que o caminho do saber é o da humildade. Porque só procura quem sente a falta. E, até ao fim, procurou, e procurou, acrescentar um pouco de areia à sua ilha (o meu Tio gostava, particularmente, desta metáfora de Huxley). Achava que era o dever de cada um de nós, nesta existência, lançar a ponte para o próximo. Só assim, no seu entendimento, a compreensão poderia emergir. E, de facto, sempre procurou esse conhecimento do outro. Ouvia-nos, sentado, a cabeça ligeiramente inclinada, num misto de compreensão e indulgência. De seguida, as suas palavras apenas lucidez. Afinal, os tempos não pedem outra coisa...

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